Estes são os relatos dos três desfechos de uma mesma história.
Eram
três Josés*, todos filhos da cidade, mesma faixa etária, habitantes da zona
rural, família grande. Também compartilhavam do mesmo problema. Ainda na
infância começaram a apresentar um comportamento estranho, isolando-se,
afirmando ver/ouvir coisas, perdendo-se de casa todas as vezes que saiam num
passeio desnorteado, incapazes de conviver entre os pares. Os três
compartilharam do mesmo desenvolvimento. Cresceram com crises de violência,
perda da capacidade de comunicação, insones e, para família, malucos. Os três
compartilharam do mesmo tratamento. Foram condenados a viver em celas imundas,
dormindo e fazendo suas necessidades no chão, presos com grossas correntes pelo
tornozelo por um crime que nunca cometeram.
Então
os trilhos de suas vidas se separaram.
Há
alguns anos, em virtude de toda a campanha do Fome-Zero do Governo Federal, os
olhos do Estado finalmente se voltaram para este bolsão de pobreza, trazendo
consigo todo um aparato de técnicos das mais diversas áreas para desenvolver e
mudar a região. Os profissionais de saúde que aqui trabalhavam, e aqui destaco
o mérito da coordenadora de saúde Idvani e sua equipe, empenharam-se em mudar o
paradigma dos Josés, resgatando-os de suas prisões e finalmente oferecendo-lhes
a oportunidade de serem avaliados no Centro de Apoio Psicossocial (CAPS) de uma
cidade vizinha.
Suas
situações foram estudadas e cada um foi devidamente medicado, propondo o
nascimento de um novo sol em suas vidas. Contudo a história não terminou tão
bela para todos.
O
primeiro José, um rapaz de tez morena, franzino, retornou para casa e foi
recebido de braços abertos pela família. Suas correntes foram rompidas e agora
era permitido e convidado a transitar por sua comunidade. Tive a oportunidade
de vê-lo andando de bicicleta pelas ruas e, depois, bem vestido, de terno e
gravata, indo ao culto de sua igreja. Quando visitei sua casa, fui recebido com
um aperto de mão alegre e caloroso. A felicidade de sua mãe ao comentar os
avanços no tratamento transbordava de seu sorriso.
O
segundo José, gordinho e de pele alva, também abandonou seus grilhões. Talvez
fosse o que tivesse pior passado dos três. Sua cela era afastada da casa e o
tratamento que recebia não seria dispensado a um cão. Medicado, não foi
recebido em casa. Tinham medo dele. A solução foi levá-lo para uma instituição
na capital Teresina, onde hoje vive, feliz e alheio ao desprezo da própria
família. Este não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente, mas pude vê-lo
por fotos, em seu aniversário, alegre. Tampouco conheci sua família.
Quanto
ao último José, conversando com os profissionais que o levaram para São
Raimundo Nonato, era encantador escutar os relatos de sua felicidade dentro do
carro. Dançava inquieto as músicas que o motorista colocava no rádio. Sua
primeira experiência com sorvete foi hilária, devorando um atrás do outro, como
me contaram as testemunhas. Foi avaliado pelo psiquiatra e medicado. Retornou
para casa na esperança de se livrar das correntes e ser reincorporado por sua
comunidade.
Um
ano se passou e fui visitá-lo pela primeira vez. Lá estava ele, num quarto dos
fundos da casa, sem móveis, apenas uma janela que dava para o poente. No chão,
um imenso quebra-cabeça montado de EVA fazia às vezes de tapete. Várias cobertas
espalhadas pelo chão e José abaixo delas. Percebi no canto um balde sujo e o
cheiro forte de urina. Sua mãe lhe chamou pelo nome e ele se levantou, apenas
de calção. Era longilíneo, barbudo, magricela. Percorri com os olhos todo o seu
corpo até que me deparei com seu tornozelo, enfeitado com uma volta de grossa
corrente, presa com cadeado, e que corria até a parede, desaparecendo por um
buraco.
Conversando
com a enfermeira da área, fiquei sabendo que todas as tentativas de medicação
de José esbarravam na atitude da família, que não parecia interessada em sua
recuperação. Nunca deixavam faltar os benzodiazepínicos, pois o faziam dormir.
Mas as drogas que o resgatariam deixavam de dar, ou mesmo faltar. O sono traz
uma morte aparente, situação confortável para eles.
Agora,
desprovido da presença do Estado, com o fim dos esforços do Fome-Zero,
distantes do período eleitoral, o desafio de resgatar nosso José tornou-se uma
tarefa difícil. Reunimos enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e
iniciamos uma nova campanha. Contudo, o maior desafio será convencer a família,
agente indispensável para a recuperação de nosso prisioneiro.
Estes são fatos que se repetem aos milhares pelo interior e até mesmo nas grandes
cidades do Brasil. A carência de serviços e profissionais preparados para
lidar com o paciente mental revelam a fragilidade do nosso sistema de saúde e
das políticas voltadas para o problema. Mas com perseverança e estudo, vamos
aos poucos tentar mudar este triste quadro.
* Nomes modificados para preservar as
identidades.
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