Fyodor Pavlovich Karamazov era um crápula. Um beberrão
inveterado, afeito a todas as práticas e vícios condenados em qualquer
sociedade possível. Emergiu incólume de dois casamentos, nos quais deixou 3
filhos e mágoas profundas. Em sua magistral obra, Fyodor Dostoyevsky relata os
abusos cometidos pelo bufão, esmiúça as personalidades intrigantes de seus
filhos e tem como desfecho o parricídio e a procura pelo culpado dentro da
família Karamazov.
Mas este texto não é sobre o livro, mas por que interrompi
sua leitura pela terceira vez em 6 anos! Para ilustrar melhor, tomaremos um
novo rumo.
Em 1927, o pai da psicanálise, Sigmund Freud, lançou no
ensaio Dostoievsky e o Parricídio as primeiras impressões registradas na
literatura sobre o comportamento masculino no complexo de Édipo. Para sustentar
sua argumentação, apoiou-se sobre três grandes obras, a saber: Édipo Rei, de
Sófocles; Hamlet, de William Shakespeare e claro, Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky.
O escritor grego relatou em sua tragédia o drama do rei
homônimo que, cumprindo uma profecia antiga, assassina o pai e desposa a mãe.
Ao tomar conhecimento da condição de marido da própria genitora, fura os olhos
e parte pelo mundo como mendigo, a fim de espiar seus pecados.
Na outra obra, o dramaturgo inglês conta a história do
príncipe da Dinamarca, Hamlet, que tem o pai assassinado pelo tio, o qual
usurpa seu trono e toma sua mãe como rainha. O espectro do pai lhe aparece
cobrando vingança, tarefa encarada com amargura pelo príncipe.
A perda do pai é a ação central das três obras. Entretanto,
as intrigas geradas pelo ato são o verdadeiro motivo da excelência delas.
Sófocles discorre sobre o tabu social do incesto, a culpa pela consumação do
ato e as medidas desesperadas adotadas pelas personagens como punição.
Shakespeare vai mais fundo mostrando a angústia de um filho frente ao
enfrentamento do tio assassino. Por que Hamlet exita tanto em desferir o golpe
fatal sobre o algoz de seu pai? A fúria com que cai sobre outros inimigos não é
a mesma dedicada ao tio.
Já faz alguns anos que vivo um drama semelhante aos dos
irmãos Karamazov. Cada vez que iniciei a leitura do livro, via estampada em
suas páginas os sentimentos negativos cultivados pelo convívio conflituoso com
meu próprio pai. Daí, não via outra solução senão fechar o livro e legar-lhe
mais uma temporada de ostracismo em minha estante.
Admito que nem sempre vivemos de rugas. Houve uma época em
que o considerava, como qualquer criança, meu herói. Contudo os anos passaram e
com eles foi embora a venda que me impedia de enxergar a verdadeira figura de
meu pai. Não obstante, perdi outras referências que usava como fortaleza e
modelo a seguir. Da mesma forma, encontrei-me homem feito, irmão mais velho e
protetor de minha família. Matei meu herói e lhe tomei a esposa. Quando dei por
mim, encarnava o complexo de Édipo.
Os meses de distância permitiram que tomasse um olhar
crítico a respeito de minhas atitudes e chegasse a essas conclusões, mesmo que
imprecisas ou exageradas. Hoje assumo atitudes diferentes com relação ao
convívio com meus pais. Entendi minha posição dentro da família, assim como
minhas responsabilidades. Não fecho os olhos para o passado, entretanto tento
ser mais cauteloso quanto ao futuro. Ainda não tive coragem de reabrir “Os
Irmãos Karamazov”, mas pretendo um dia terminar sua leitura e encontrar novas
respostas para esse dilema tão antigo.