quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Dor de Cabeça

Durante a faculdade, aprendemos a fazer perguntas! Refletindo um pouquinho sobre o assunto, acredito que aprender a fazer perguntas é a base para o conhecimento. Perguntamos e procuramos pelas respostas. Reunimos tudo numa sacola, acessamos os recônditos de nossas memórias, misturamos com a (curta!) experiência, associamos fatos e pronto: diagnóstico. Até aí tudo bem!

Um paciente chega com dor de cabeça. Automaticamente, listamos um conjunto de indagações próprias da semiótica para cefaléia. Idade? Sexo? Profissão? Dói onde? Há quanto tempo? Freqüência? Intensidade? Prôdromos? O que melhora? O que piora? Alguma outra queixa relacionada? Destas perguntas extraímos o material necessário para o diagnóstico diferencial, passando por estresse, infecção, enxaqueca, câncer, dentre outros. Um exame físico mais minucioso e o espectro de doenças se estreita. Alguns exames complementares e fechamos. Tratamento, bom dia e tchau.

Esse seria o roteiro perfeito para uma consulta, com desfecho agradável e felicidade para ambos os lados. Mas a realidade é diferente e infelizmente, existem mil causas diferentes de dor de cabeça. A pior delas, acredito, é a que nos assolou recentemente, causada pela histeria da população. Explico!

Carol*, 19 anos, chega à unidade de saúde se queixando de febre e dor de cabeça muito forte. Medicada, melhora substancialmente e volta para casa. No dia seguinte, morre. Cesar*, 33 anos, inicia um quadro súbito de dor de cabeça após libação alcoólica. Avaliação primordial mostra apenas cefaléia de provável ressaca. Medicado, pouco alívio. Encaminhado a um hospital de emergência, reencaminhado a um serviço terciário, morre 20 dias depois.

Nos dias seguintes, uma avalanche de pacientes reclamando de dor de cabeça invade a unidade de saúde. Uma luta infernal para ser consultado. Lista na mão: idade, sexo, profissão, onde, quando... Ao final do dia, muito analgésico depois, a dor de cabeça é a minha. Lista na mão! Homem de 26 anos, médico do PSF, cefaléia fronto-temporal, de início recente (há poucas horas), de leve/média intensidade, sem prôdromos, sem fotofobia, agravada pelas queixas de cefaléia infundadas e com melhora após um pouco de silêncio, paracetamol e um banho! Ausência de outras queixas. Ao exame, bom estado geral, sem qualquer achado relevante. Diagnóstico?

O assombro populacional após duas mortes relacionadas à cefaléia gerou uma histeria. Antes todos tinham dores de cabeças ocasionadas por consumo exagerado de café, álcool, trabalho extenuante, condições difíceis de vida... É claro que sofriam, mas tinham suas medidas para saná-las. De repente, sua dor de cabeça tornou-se uma ameaça insuportável. Ninguém parou para contemplar os fatos. Empiricamente, associaram: dor de cabeça igual à morte. Eliminaram da equação todo o resto!

Carol fora passear em outro município assolado por inúmeros casos de dengue. Apresentou febre e outros sintomas típicos da doença. Desenvolveu um quadro de choque hemorrágico da dengue e morreu. Estava ausente da cidade e não pude avaliá-la quando procurou o serviço de saúde. Cesar era epiléptico, recém-operado de estreitamento de esôfago de causa obscura, negava quaisquer das doenças, bebia sem moderação e morreu de acidente vascular maciço após quadro de encefalite viral.

Duas exceções que resolveram se passar num minúsculo município, de habitantes em sua maioria analfabetos ou de baixíssima escolaridade, pouco esclarecidos em qualquer assunto que ultrapasse as fronteiras da cidade. Em outras palavras, não souberam fazer os questionamentos necessários para perceber quão extraordinária era aquela situação. Por outro lado, a faculdade ensina a fazer perguntas de certo modo dirigidas a uma única pessoa, mas somente a prática ensina a lidar com as conseqüências das respostas, ainda mais quando vem de diferentes fontes. Coletar e associar! 

* Nomes alterados para preservar a identidade.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

José e as Correntes

Estes são os relatos dos três desfechos de uma mesma história.



Eram três Josés*, todos filhos da cidade, mesma faixa etária, habitantes da zona rural, família grande. Também compartilhavam do mesmo problema. Ainda na infância começaram a apresentar um comportamento estranho, isolando-se, afirmando ver/ouvir coisas, perdendo-se de casa todas as vezes que saiam num passeio desnorteado, incapazes de conviver entre os pares. Os três compartilharam do mesmo desenvolvimento. Cresceram com crises de violência, perda da capacidade de comunicação, insones e, para família, malucos. Os três compartilharam do mesmo tratamento. Foram condenados a viver em celas imundas, dormindo e fazendo suas necessidades no chão, presos com grossas correntes pelo tornozelo por um crime que nunca cometeram.

Então os trilhos de suas vidas se separaram.

Há alguns anos, em virtude de toda a campanha do Fome-Zero do Governo Federal, os olhos do Estado finalmente se voltaram para este bolsão de pobreza, trazendo consigo todo um aparato de técnicos das mais diversas áreas para desenvolver e mudar a região. Os profissionais de saúde que aqui trabalhavam, e aqui destaco o mérito da coordenadora de saúde Idvani e sua equipe, empenharam-se em mudar o paradigma dos Josés, resgatando-os de suas prisões e finalmente oferecendo-lhes a oportunidade de serem avaliados no Centro de Apoio Psicossocial (CAPS) de uma cidade vizinha.

Suas situações foram estudadas e cada um foi devidamente medicado, propondo o nascimento de um novo sol em suas vidas. Contudo a história não terminou tão bela para todos.

O primeiro José, um rapaz de tez morena, franzino, retornou para casa e foi recebido de braços abertos pela família. Suas correntes foram rompidas e agora era permitido e convidado a transitar por sua comunidade. Tive a oportunidade de vê-lo andando de bicicleta pelas ruas e, depois, bem vestido, de terno e gravata, indo ao culto de sua igreja. Quando visitei sua casa, fui recebido com um aperto de mão alegre e caloroso. A felicidade de sua mãe ao comentar os avanços no tratamento transbordava de seu sorriso.

O segundo José, gordinho e de pele alva, também abandonou seus grilhões. Talvez fosse o que tivesse pior passado dos três. Sua cela era afastada da casa e o tratamento que recebia não seria dispensado a um cão. Medicado, não foi recebido em casa. Tinham medo dele. A solução foi levá-lo para uma instituição na capital Teresina, onde hoje vive, feliz e alheio ao desprezo da própria família. Este não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente, mas pude vê-lo por fotos, em seu aniversário, alegre. Tampouco conheci sua família.

Quanto ao último José, conversando com os profissionais que o levaram para São Raimundo Nonato, era encantador escutar os relatos de sua felicidade dentro do carro. Dançava inquieto as músicas que o motorista colocava no rádio. Sua primeira experiência com sorvete foi hilária, devorando um atrás do outro, como me contaram as testemunhas. Foi avaliado pelo psiquiatra e medicado. Retornou para casa na esperança de se livrar das correntes e ser reincorporado por sua comunidade.

Um ano se passou e fui visitá-lo pela primeira vez. Lá estava ele, num quarto dos fundos da casa, sem móveis, apenas uma janela que dava para o poente. No chão, um imenso quebra-cabeça montado de EVA fazia às vezes de tapete. Várias cobertas espalhadas pelo chão e José abaixo delas. Percebi no canto um balde sujo e o cheiro forte de urina. Sua mãe lhe chamou pelo nome e ele se levantou, apenas de calção. Era longilíneo, barbudo, magricela. Percorri com os olhos todo o seu corpo até que me deparei com seu tornozelo, enfeitado com uma volta de grossa corrente, presa com cadeado, e que corria até a parede, desaparecendo por um buraco.

Conversando com a enfermeira da área, fiquei sabendo que todas as tentativas de medicação de José esbarravam na atitude da família, que não parecia interessada em sua recuperação. Nunca deixavam faltar os benzodiazepínicos, pois o faziam dormir. Mas as drogas que o resgatariam deixavam de dar, ou mesmo faltar. O sono traz uma morte aparente, situação confortável para eles.

Agora, desprovido da presença do Estado, com o fim dos esforços do Fome-Zero, distantes do período eleitoral, o desafio de resgatar nosso José tornou-se uma tarefa difícil. Reunimos enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e iniciamos uma nova campanha. Contudo, o maior desafio será convencer a família, agente indispensável para a recuperação de nosso prisioneiro.

Estes são fatos que se repetem aos milhares pelo interior e até mesmo nas grandes cidades do Brasil. A carência de serviços e profissionais preparados para lidar com o paciente mental revelam a fragilidade do nosso sistema de saúde e das políticas voltadas para o problema. Mas com perseverança e estudo, vamos aos poucos tentar mudar este triste quadro.


* Nomes modificados para preservar as identidades.