Um paciente chega com dor de cabeça. Automaticamente,
listamos um conjunto de indagações próprias da semiótica para cefaléia. Idade?
Sexo? Profissão? Dói onde? Há quanto tempo? Freqüência? Intensidade? Prôdromos?
O que melhora? O que piora? Alguma outra queixa relacionada? Destas perguntas
extraímos o material necessário para o diagnóstico diferencial, passando por
estresse, infecção, enxaqueca, câncer, dentre outros. Um exame físico mais
minucioso e o espectro de doenças se estreita. Alguns exames complementares e
fechamos. Tratamento, bom dia e tchau.
Esse seria o roteiro perfeito para uma consulta, com
desfecho agradável e felicidade para ambos os lados. Mas a realidade é
diferente e infelizmente, existem mil causas diferentes de dor de cabeça. A
pior delas, acredito, é a que nos assolou recentemente, causada pela histeria
da população. Explico!
Carol*, 19 anos, chega à unidade de saúde se queixando de
febre e dor de cabeça muito forte. Medicada, melhora substancialmente e volta
para casa. No dia seguinte, morre. Cesar*, 33 anos, inicia um quadro súbito de
dor de cabeça após libação alcoólica. Avaliação primordial mostra apenas
cefaléia de provável ressaca. Medicado, pouco alívio. Encaminhado a um hospital
de emergência, reencaminhado a um serviço terciário, morre 20 dias depois.
Nos dias seguintes, uma avalanche de pacientes reclamando de
dor de cabeça invade a unidade de saúde. Uma luta infernal para ser consultado.
Lista na mão: idade, sexo, profissão, onde, quando... Ao final do dia, muito
analgésico depois, a dor de cabeça é a minha. Lista na mão! Homem de 26 anos,
médico do PSF, cefaléia fronto-temporal, de início recente (há poucas horas),
de leve/média intensidade, sem prôdromos, sem fotofobia, agravada pelas queixas
de cefaléia infundadas e com melhora após um pouco de silêncio, paracetamol e
um banho! Ausência de outras queixas. Ao exame, bom estado geral, sem qualquer
achado relevante. Diagnóstico?
O assombro populacional após duas mortes relacionadas à
cefaléia gerou uma histeria. Antes todos tinham dores de cabeças ocasionadas
por consumo exagerado de café, álcool, trabalho extenuante, condições difíceis
de vida... É claro que sofriam, mas tinham suas medidas para saná-las. De
repente, sua dor de cabeça tornou-se uma ameaça insuportável. Ninguém parou
para contemplar os fatos. Empiricamente, associaram: dor de cabeça igual à
morte. Eliminaram da equação todo o resto!
Carol fora passear em outro município assolado por inúmeros
casos de dengue. Apresentou febre e outros sintomas típicos da doença.
Desenvolveu um quadro de choque hemorrágico da dengue e morreu. Estava ausente
da cidade e não pude avaliá-la quando procurou o serviço de saúde. Cesar era
epiléptico, recém-operado de estreitamento de esôfago de causa obscura, negava
quaisquer das doenças, bebia sem moderação e morreu de acidente vascular maciço
após quadro de encefalite viral.
Duas exceções que resolveram se passar num minúsculo
município, de habitantes em sua maioria analfabetos ou de baixíssima
escolaridade, pouco esclarecidos em qualquer assunto que ultrapasse as
fronteiras da cidade. Em outras palavras, não souberam fazer os questionamentos
necessários para perceber quão extraordinária era aquela situação. Por outro
lado, a faculdade ensina a fazer perguntas de certo modo dirigidas a uma única
pessoa, mas somente a prática ensina a lidar com as conseqüências das
respostas, ainda mais quando vem de diferentes fontes. Coletar e associar!
* Nomes alterados para preservar a identidade.