quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Curar sempre, aliviar quando puder, consolar quem?

“Curar quando puder, aliviar quase sempre, consolar sempre”. As sábias palavras de Hipócrates atravessaram milênios como exemplo da boa prática. Interessante como parecemos esquecer essas orações neste século. Avançamos a passos largos sobre inúmeras doenças cujo prognóstico reservado nos forçava buscar um alento ao paciente. Hoje temos a chave da cura de muitas moléstias, contudo ainda somos limitados pela nossa natureza humana de estreito espectro quanto a muitos aspectos da vida, especialmente quando se trata do término dela.

Nas aparências, a morte deixou de ser uma companheira natural das enfermarias e consultórios para se tornar um tabu. A tanatologia, estudo da morte, se desenvolveu nas últimas décadas, mas permanece confinada aos recônditos de nossas bibliotecas. A psiquiatra suíça Elisabeth Klüber-Ross descreveu em 1969, no livro “Sobre a Morte e o Morrer”, as várias etapas que atravessamos diante da perda ou do enfrentamento do próprio fim. Seriam estas, numa ordem uma tanto flexível, a negação, raiva, barganha, tristeza e aceitação. Suas primeiras palavras foram “O que os doentes terminais têm a ensinar a médicos, enfermeiros, religiosos e aos próprios parentes”.

Neste ponto, volto dois anos atrás, quando ainda interno, na emergência do Hospital do Coração. Fui imerso num ambiente onde reinava a negação. A todo o momento, víamos alguém morrer, vítimas especialmente de infartos. O doente chegava, praticávamos as manobras de ressuscitação, anunciávamos a hora da morte e nos deslocávamos para as lanchonetes. Nada era discutido. Nossos pensamentos se voltavam para as partidas de futebol na TV, uma festa no fim-de-semana ou a próxima piada.

Meses depois, estava lotado na enfermaria de cardiologia do HUWC e fui encarregado de um paciente chamado José*. Era um simpático senhor de 69 anos, evangélico, animado e com uma família sempre presente, ladeando seu leito. Fora acometido por um câncer prostático e, durante tratamento, descompensou de uma insuficiência cardíaca até então desconhecida. Eu o conheci durante a cineangiocoronariografia. No laudo, várias lesões de tronco de coronária, tornando-o candidato a revascularização cirúrgica. Nos exames pré-cirúrgicos, uma ultrassonografia evidenciou múltiplas nodulações hepáticas sugestivas de metástases. Não podia operar o coração devido ao câncer e não podia tratar a próstata devido ao coração. Estava condenado. Relatório de alta e encaminhamento para manejo clínico paliativo. Morreu em fevereiro do ano seguinte.

Um ano se passou e estava encarregado de outra paciente na enfermaria cirúrgica. Dona Maria*, 43 anos, voltava para o “second look” após várias sessões de quimioterapia devido a um câncer de ovário. Durante operação, a cavidade abdominal fora revisada, destacando-se a ausência de câncer visível e possível cura. No pós-operatório, começou a apresentar febre, dispnéia e foi iniciado antibioticoterapia para infecção de sítio cirúrgico. Morreu de sepse 4 dias depois.

Em todas as situações descritas acima, eu era apenas um estudante. Minhas atribuições envolviam colher a história dos pacientes, executar um exame físico minucioso, avaliá-los diariamente, correr atrás de exames ou pareceres e estudar muito para discutir cada caso. Um dia era cardiopatia, noutro câncer, vasculites, pneumonias, AIDS, enfim, uma gama de morbidades que por vezes guardavam entre si apenas o desfecho: a morte. Mas a impressão que sempre ficava era a negação deste fato. Como lidar com a morte? Enquanto outros jovens estudavam direito, engenharia ou letras, estávamos lá, lutando contra a morte. Obviamente, havia aqueles internos que alcançavam os demais estágios descritos por Klüber-Ross, mas muitos permaneciam negando.

O tabu permanece. Derrotas são inaceitáveis neste mundo novo, onde apenas o sucesso é permitido. Falhas devem ser ignoradas e esquecidas. Erramos todos os dias negando que a morte deve ser vencida a qualquer custo e pecamos ainda mais quando não trazemos esta discussão para os novos médicos que se formam nos hospitais universitários deste país. A cada turma formada, perpetuamos a ignorância quanto ao fato monumental que recai sobre nossos ombros. Saímos em muitos aspectos imaturos quanto aos desafios de nossa prática. O campo de trabalho por vezes nos dará as lições erradas e até mesmo aprenderemos, contudo da maneira mais difícil.

Nos casos descritos, não houve cura. De certa forma, nosso empenho fora premiado com o alívio do sofrimento. Entretanto, a máxima do consolo, esta talvez também devesse ser dirigida também a nós, estudantes.

* Nomes alterados para preservar as identidades.