terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O Palhaço


Tudo começa em casa! O seu Fulano* acorda cedinho, talvez tome um banho (pouco provável), coloca a primeira roupa que aparece, toma um café forte, masca um pouco de fumo, olha pro relógio e pensa “acho que já está na hora”. O momento é aquele, o dia escolhido a dedo, tem que ser hoje, não pode passar! Vou sacanear o médico!

Só pode ser isso, não tem outra alternativa!

Digo isso porque não falta semana em que pareço ser feito de palhaço por alguns pacientes. Acordo cedinho, tomo um banho, como algo, me arrumo e vou trabalhar, para a diversão e entretenimento de algumas criaturas que comparecem ao meu consultório!

Apresentado os personagens: o Augusto, ingênuo, que sempre é pego nas brincadeiras do Branco, o espertalhão!

Atenção, senhoras e senhores! Bem-vindos ao maior show da terra, com vocês o palhaço...

Ato 1: Alvoroço na recepção. Seu Fulano* chega exaltado, desesperado atrás do médico. Sua urgência me comove e permito que entre no consultório. Está suado e apreensivo. Traz a mão direita fortemente fechada, segurando algo que está prestes a revelar.

Suspense (que rufem os tambores!):
           
            - O que aconteceu?
            - Estava sentado na frente de casa, conversando com os vizinhos, quando percebi que tinha um mosquito me chupando o sangue. Aí eu trouxe pra ver se é o mosquito da dengue!

A plateia está em polvorosa! Coitado! Mais uma vez o Branco enganou o pobre Augusto!

Ato 2: Quase meio dia, senta uma moça de seus vinte e tantos anos! Aparência serena, tranquila. Ledo engano! Aquela mente perversa estava para aprontar mais uma das suas.

            - O que foi que houve?
            - Dor de cabeça!
            - Você está com dor de cabeça (já vi isso em algum lugar)?
            - Não, agora não! Isso foi há três dias. Agora não sinto nada!

O Augusto parece que vai explodir! Vejam a cara dele, vermelha feito um pimentão! Olha a cara maquiavélica do Branco! Que maldade!

Ato 3: Dessa vez deve ser sério! Uma senhorinha, de seus não-sei-quantos-já-me-esqueci anos, entra a passos lentos, um sorriso de bom-dia, senta e estica o braço na mesa.

            - Queria ver minha pressão!
            - Vamos conversar primeiro e depois eu examino a senhora! A senhora está aqui por quê?
            - Pra me consultar!
            - Certo, mas por quê?
            - Porque tô doente!
            - Certo, doente de quê?
            - Não sei, por isso vim me consultar!

A tensão aumenta! Mas aquele sorriso desdentado explica tudo. Mais uma senhorinha sem muita instrução. Preciso mudar os argumentos se quiser chegar a algum lugar!

            - O que a senhora está sentindo?
            - A meu“fi”, é muita dor!
            - E onde é essa dor?
         - É uma dor que sai aqui do cachaço, corre pela espinhadeira e fica apontando na alcatra! Aí fica saindo de um joelho pro outro a noite toda, chega as veia do braço incha e a cabeça fica assim, olha!

Em que capítulo do livro de semiologia se encontra tal descrição mais engenhosa? O Augusto leva as mãos ao rosto e respira fundo!

            - Deixa eu ver sua pressão!

Aí está! A plateia não se contém e debocha do coitado. Do outro lado, o Branco sorri orgulhoso de mais uma vitória!

Já fui palhaço! Quando universitário, entrei para o fabuloso Projeto Y de Riso, Sorriso e Saúde. Éramos estudantes de medicina, enfermagem e psicologia. Após uma capacitação nas artes do Clown, corríamos pelos corredores do Hospital Universitário trajados de doutores-palhaços, diagnosticando as doenças mais malucas, receitando alegria e tratando com humor e diversão pacientes, acompanhantes e profissionais. Eu era o dr. Grandão! Foi uma breve passagem, na verdade, mas pude ver em ação os encantadores dr. Acerola e dra. Tampinha, a travessa dra. Mentirinha e a doçura da dra. Pinguinho! Sem contar os outros que tanto me cativaram e por quem tenho profunda admiração.

Abandonei o projeto, mas conservei o espírito! Assim como eu, todos os doutores-palhaços da minha época também aposentaram o nariz vermelho, mas preservaram o carinho e atenção que dedicaram especialmente às crianças da ala pediátrica do HU.

A velha brincadeira do Augusto e do Branco se passa diariamente nos consultórios médicos de todo o país. Contudo, os papéis encontram-se normalmente invertidos. Trajados de jaleco, bem arrumados, somos os carrascos Brancos, enquanto nossos pacientes persistem sendo os ingênuos Augustos. A dinâmica deste jogo afeta diretamente como somos vistos pela sociedade. Já passou do momento de diferenciarmos o picadeiro do palco de nossa verdadeira prática!

Chego em casa, lavo o rosto, guardo o nariz vermelho e descanso de mais uma apresentação!

*Nome alterado para preservar minha integridade!