quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Koro


A rotina do atendimento ambulatorial por vezes é maçante. Passamos o dia atendendo pacientes com problemas de pressão arterial, diabetes, crianças resfriadas e as muitas queixas de dor, desde as cefaleias até aquelas dores fantasmas misteriosas que ninguém explica, mas que muitas vezes passam com uma boa conversa e uma cartela de paracetamol.

Mas a vida guarda suas surpresas! Então, numa bela manhã de quarta-feira, entra o seu Valdir* no meu consultório. Paciente habitual, pouco mais de 60 anos, faz acompanhamento por hipertensão arterial, com boa resposta às medicações. Está em companhia da filha, que traz consigo uma sacola cheia de caixas de remédios. Enquanto converso com seu Valdir, sua filha fica me dando orientações sobre conselhos a serem dados ao próprio pai, transformando a consulta numa babel desenfreada.

Após um breve esclarecimento a respeito do papel de cada um dentro daquela sala, ânimos acalmados, vejo que seu Valdir está muito incomodado com algo. Então peço a ele que esclareça. Um tanto acanhado, pede à filha que saia do consultório, pois queria falar em particular comigo.

Resoluta, a mulher deixou a sala. Assim que a porta foi trancada, seu Valdir me encarou de olhos arregalados. Com uma expressão assustada, falou:

- Doutor, meu pau tá sumindo!

Quem está preparado para tal confissão? Na verdade, quem já foi agraciado com tal revelação a respeito de um órgão tão íntimo? Fiquei por um momento sem palavras, mas tentei organizar meu pensamento para esclarecer aquela queixa tão bizarra. Então lembrei algo que havia lido há algum tempo.

Em 1967, uma histeria generalizada espalhou-se entre os homens de Cingapura. Centenas correram aos hospitais apresentando as mesmas queixas: o pênis estava sumindo. A causa: consumo de carne de porco vacinado contra gripe suína. Após o relato de que um dos porcos havia morrido com retração peniana, a moléstia se espalhou – e era altamente contagiosa. O tal transtorno, batizado de Koro, causava grande ansiedade, impotência e alguns dos acometidos acreditavam que morreriam assim que o pênis desaparecesse completamente. O mais intrigante era que não havia mudança alguma no comprimento do falo quando acompanhados (quem fez as medidas?).

Outros países na Europa, África e na Ásia também sofreram seus surtos de Koro. Apesar dos sintomas serem os mesmos, as causas variavam conforme os costumes locais: feitiçaria, desonra aos ancestrais, masturbação...

Seu Valdir disse que notou o encolhimento do seu órgão há varias semanas, inclusive fazendo questão que eu olhasse e desse minha opinião. Também reclamou de impotência sexual e que, por vezes, apresentava problemas ao urinar. A primeira coisa que veio a minha cabeça foi exatamente um distúrbio psicológico como o Koro, mas não podia fechar os olhos para outros diagnósticos, como uma disfunção erétil típica da idade (o que era, de fato) ou a doença de Peyrone, que também causa encolhimento peniano, curvatura anormal e pode evoluir com impotência.

Infelizmente, não dispunha de conhecimento especializado. De certa forma, tentei tranquilizar seu Valdir quanto à dimensão do seu problema e indiquei que procurasse um urologista para uma avaliação mais acurada do seu caso. Seu Valdir deixou meu consultório mais aliviado. Quanto a mim, rotina quebrada de maneira tão inusitada, torci para que o dia transcorresse com os pacientes habituais: hipertensos, diabéticos, gripados...

* Nome alterado para preservar a identidade.

sábado, 29 de dezembro de 2012

A caatinga e o Caatingueiro

Era mais uma tarde quente de outubro. O sol se inclinava no horizonte, despejando toda sua glória sobre os sertões nordestinos. À minha frente, apenas a estrada de terra e um futuro não desenhado. Para trás, deixava dois anos de vida e uma história.

Emoldurando esse quadro, a Caatinga.

Ainda estudante, guardava um grande preconceito quanto a esse bioma. Era ignorante. Nasci na caatinga e lhe neguei o feito. Desdenhava de suas matas secas, de sua aridez. Contudo, convivendo nesse habitat, passei a conhecê-lo. Digo mais, passei a admirá-lo. Vivendo em seus domínios, pude admirar sua beleza e respeitar sua importância. Da mesma forma, também pude conhecer o sertanejo, esse indivíduo que sobrevive em condições extremas e que tem como recompensa nosso desdém pseudocivilizado.

Lembrei Euclides da Cunha, que nos últimos anos do século XIX foi designado a acompanhar a Guerra de Canudos no sertão da Bahia. Voltando do conflito, publicou o livro Os Sertões em que descrevia o cenário, os habitantes e o andamento da guerra – A Terra, O Homem e A Luta. Quero me ater aos dois primeiros tomos do livro.

Escrevendo numa linguagem hermética, caprichada de termos técnicos mesclados a neologismos, Euclides pinta um quadro do sertanejo e seu lar com profundo tom determinista e generosas doses de racismo. Até hoje observamos a influência de suas palavras quando assistimos aos repetidos episódios de ataques a nordestinos, seja nas ruas ou em redes sociais.

Eis as palavras imortais de Euclides sobre o homem: O sertanejo é, antes de tudo, um forte.

Essa oração diz tudo sobre o homem que vive na caatinga. De certa maneira ele se confunde com a vegetação, feia, tortuosa, dura, espinhosa. Mas traz em seu âmago um poder transformador inigualável, uma fé inabalável, uma energia imensurável. Pouco afeito as palavras, passa por rude. Não tem os modos que criamos para parecermos melhores. Escondem as mãos sujas e calejadas do trabalho. Desculpam-se por não ter roupas melhores ou por não oferecer algo melhor que água – seu bem mais precioso.

Então se transmutam. Vestem o gibão de couro e tornam-se heróis, desbravando a mata intrincada atrás de uma rês perdida. Suportam horas de sol quente nas costas para arar a terra e dela tirar seu sustento.

Seu lar é tão surpreendente quanto. Uma vastidão marcada por áreas de chapadas, depressões e elevações. A vegetação xerófila inclui desde gramíneas, arbustos e árvores. O mandacaru e o xique-xique são elementos comuns em sua paisagem. O solo varia do cascalho ao arenoso. Sua fauna é rica e desconfiada. Vive a espreita da onça pintada e do caçador. Por vezes, são vítimas do fogo, que se espalha como o vento por suas paragens. Alguns pontos convivem com seca intensa enquanto outras são intermitentemente abençoadas com chuvas. Euclides observou na época que a caatinga sofria com grandes temporadas de seca em períodos cíclicos de 9 a 12 anos que podiam ser recontados desde o século XVIII.

Apesar de todo o sofrimento trazido pela estiagem, fui agraciado com o incrível espetáculo de cores proporcionado pela natureza. As plantas verdinhas, ao longo dos meses, foram mudando seus matizes, trocando seus trajes verdejantes por cores quentes. Logo suas folhas irradiavam um amarelo que aos poucos encandeceu num vermelho vivo. No mesmo período, a incapacidade de sustentar tantas folhas com o escasso alimento fornecido pela terra fazia com que elas fossem liberadas e forrassem o chão, tornando a mata num cemitério de caules brancos (caa = mata; tinga = branca; do tupi).

Esse fenômeno se repete periodicamente e ilustra de maneira soberba o ciclo da vida e a importância da água nessa região. Basta caírem as primeiras gotas de chuva e a mata recupera seu manto esmeralda.

Da janela do carro, tentava ver o mais adentro da mata o possível. Tarefa absurda. Mesmo desprovida de folhas, a vegetação é intrincada, hermética como as palavras de Euclides. Não se conhece a caatinga por palavras. As verdadeiras ainda não existem para descrevê-la. Tampouco se conhece um sertanejo por livros. Apenas a convivência permite.

Deixo meus sertões modificado, um pouco mais calejado, a pele mais dura. Volto para casa maravilhado e saudoso com o que vivi. Uma experiência única, que humildemente tentei transformar em palavras.

sábado, 27 de outubro de 2012

A Famigerada

Era uma manhã ensolarada como as outras. A breve caminhada até o posto de saúde custava algumas gotas de suor apenas em virtude do calor, pois pouco mais de 400 metros separavam minha casa do trabalho. A cada três passos declarava um bom dia aos vários vizinhos, sentados nas calçadas, e errantes que partilhavam do meu caminho.

Já ganhava a primeira metade da trilha quando fui abordado pelo seu Josué*. Um senhor de pele escura, grossa, típica de quem ganha a vida na roça. Já contava mais de 60 anos, mas ainda conservava disposição para dar um pique até me alcançar.

- Doutor, está indo pro hospital? – perguntou assim que pareou comigo. Após minha afirmativa, prosseguiu falando – Sabe o que é, doutor? É que eu queria que você fizesse uma receita de benzetacil pra eu tomar mais tarde.

Intrigado com aquilo, perguntei o motivo pelo qual ele queria tomar aquela medicação em particular. Sua resposta foi mais curiosa ainda. Seu Josué disse que sempre que podia tomava uma injeção de benzetacil, desde que era novo. Os motivos, os mais variados! Quando sentia febre; quando tomava um susto muito grande; quando levava uma marruada de um bezerro e até quando doía as costas...

- É um santo remédio, doutor! É só tomar que eu fico bonzim! Parece vitamina!

Este santo remédio foi descoberto há quase 100 anos, pelo médico escocês Alexander Fleming. Reza a lenda que o brilhante pesquisador saiu de férias num mês de Agosto para curtir o verão europeu e esqueceu de guardar as placas de cultura de bactérias que cultivava em seu laboratório. Quando retornou, em Setembro, notou as placas na bancada, cheias de bolor, e já ia limpando e esterilizando quando notou que algumas culturas haviam sido destruídas pelo fungo. Descansado e bronzeado, dedicou-se a pesquisar o fungo e descobriu a Penicilina, o que lhe rendeu um prêmio Nobel de medicina e um título de cavaleiro do Reino Unido.

Décadas se passaram e o uso abusivo e indiscriminado deste antibiótico miraculoso o tornou obsoleto para uma variada gama de bactérias. Justificativas? As mesmas dadas pelo seu Josué. Não muito tempo atrás, havia quem usasse os restos do pó nos frascos para passar em feridas, contribuindo mais ainda para seleção de cepas resistentes.

Para complicar a história, ainda existe o fato de que a penicilina benzatina é usada de forma injetável, tipicamente intramuscular, com um ônus ao paciente – dói.

Eu era apenas um garoto quando tive minha nádega direita beijada pela famigerada. Na época, sofria de impetigo, uma infecção de pele. O algoz foi meu padrinho, médico. Enquanto aplicava, parecia que estava abrindo minha carne a sangue frio. A desgraçada dói pra caramba! Um sujeito em plenas faculdades mentais não tomaria essa medicação de forma rotineira.

Ainda interno, ficava condoído com aqueles que saíam do consultório com a receita de benzetacil. A primeira vez que a prescrevi também foi acompanhada de um sentimento de dó. Um garotinho de 6 anos que desenvolvera febre reumática e estava condenado a tomar uma dose a cada 21 dias pelo menos até completar 21 anos.

Infelizmente, no processo de diagnóstico e tratamento, muitas etapas são dolorosas e penosas aos pacientes. Uma criança não entende por que deve ter seu sangue retirado, ou por que deve tomar uma injeção todo mês. Apenas sofre. Pior ainda. Nós médicos nos tornamos cada vez mais alheios ao sofrimento de nossos pacientes. Curar, aliviar, consolar – o antigo, belo e negligenciado ditado.

Mas então procurei me colocar no lugar do seu Josué – uma mistura de pouca letra com uma bagagem cultural repleta de desinformação e maus costumes. De outra forma, talvez a dor causada pela injeção aliviasse a que lhe corroía o âmago. Substituir uma angústia na alma por outra na carne, esta última fácil de localizar, de causa bem determinada e limitada.

É obvio que não lhe entreguei a receita. Em contrapartida, ofereci meu tempo. Convidei a uma consulta no posto para discutirmos a real necessidade do medicamento, orientei quanto aos riscos da automedicação e o deixei a vontade para me procurar sempre que julgasse preciso.

* Nome alterado para preservar a identidade.

sábado, 11 de agosto de 2012

Hoje é Sábado!


                       
A Criação de Adão, por Michelangelo Buonarroti, Capela Sistina, Roma, 1511 

No princípio... disse Deus: “Haja luz”, e houve luz. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou à luz dia e às trevas chamou noite. Passaram-se a tarde e a manhã. Este foi o primeiro dia (Gn 1:1,3-5). Depois disso, passaram-se mais cinco dias e o homem chegou à Terra. Aí, no alto de sua divindade, Ele tirou o sétimo dia para descansar!

Todos conhecemos a fábula criacionista judaico-cristã, supostamente escrita por Moisés junto aos outros livros da Torá. O fato é que a narrativa contempla um período de sete dias, que culminou com a nossa sagrada semana, iniciada no domingo e pulverizada no sábado, o dia de “apaziguar nossos corações” com descanso. O certo é que esse foi um número bem arbitrário, de cunho absolutamente cultural. Outros povos da antiguidade obedeciam calendários com números variados de dias, sempre mais que um e menos que 30!

Mas para que serve isso mesmo? Nossos antepassados pouco se importavam que a segunda-feira era dia de trabalho, terça de paredão, sexta de cerveja e domingo do Faustão. A vida de coletor não necessitava de marcações. Mas a agricultura nos forçou a pensar no tempo. Eram sabidas as estações do tempo, quando chovia mais e quando não se aconselhava plantar. A mesma agricultura possibilitou a formação das primeiras sociedades organizadas, e com elas vieram as obrigações e os cultos. Então havia o dia de trabalhar e os dias dedicados as deidades. Os egípcios e os chineses tinham suas semanas de dez dias, enquanto sumérios e gregos reconheciam apenas sete, um para cada deus-planeta. Outros povos africanos, como os Igbos nigerianos, se resumiam a apenas quatro!

Toda essa conversa nos leva ao pequeno município isolado num grotão perdido do interior piauiense. Apesar da chegada da modernidade, com mercados e outras lojas sofisticadas, a maior parte da população ainda se dedica exclusivamente à agricultura, dela retirando seu sustento e dela padecendo. E para que serve uma semana de sete dias para eles? Não importa que hoje seja terça ou domingo! Se chegou a hora da colheita, não é muito sagaz deixar a produção se estragar somente por que hoje é sábado.

Do outro lado, a população dispõe apenas de uma única unidade básica de saúde, a qual funciona regularmente de segunda a sexta em horário comercial. Nos outros períodos, o estabelecimento fica fechado, sob a guarda de um vigia.

Residir no mesmo pequeno município em que se trabalha tem dessas coisas. A emergência mais próxima fica a três horas de viagem. Então não importa a hora ou o dia da semana, se há uma necessidade, eles já conhecem o endereço. Então seja pra assinar uma receita ou mostrar uma criança febril, a segunda porta que procuram, depois do posto, é sempre a de minha casa. O complicado é explicar que lugar onde se mora não é consultório! Há um ano venho martelando nesse quesito, com pouco sucesso.

Aí chega um abençoado sábado! A unidade fechada e eu em casa. A manhã corre tranqüila quando, de repente, uma moto estaciona na porta e descem dois indivíduos, um homem e seu filho. O mais velho bate na porta e vou ver quem é.

- Oi!
- Com licença! O médico mora aqui?
- Sim, sou eu!
- É que fui no posto e estava fechado.
- É por que hoje é sábado!
- Ah!
Silêncio.
            - Então não tem atendimento no posto hoje?
            - Não, por que hoje é sábado!
            - Ah!
Silêncio...

segunda-feira, 25 de junho de 2012

A Perna, o Cérebro e o Coração


O Sr Casimiro* compareceu ao meu consultório pela primeira vez há um ano, num mês de Junho como esse. Um senhor distinto, com pouco mais de 50 anos, estatura mediana, olhar sincero e com uma queixa bastante curiosa. Há alguns meses vinha apresentando uma dormência no dedão do pé direito, acompanhado de dor e cianose da extremidade. Era fumante e tinha uma barriga bem generosa, fruto de muito beiju (tapioca) e carne assada – tipicamente consumida diariamente na localidade onde morava.

Durante a consulta, descobri que também era hipertenso e fazia uso bastante irregular das medicações. Procedi com o exame físico e observei que os pulsos periféricos da perna direita estavam bastante comprometidos, fortalecendo a hipótese de insuficiência vascular arterial periférica. Solicitei alguns exames, orientei que consultasse um cirurgião vascular e otimizei seus medicamentos para pressão. Então ele sumiu!

Meses depois, fui procurado por um de seus filhos que solicitou uma visita domiciliar, pois seu pai fora operado e não poderia se deslocar até o posto de saúde. Fui vê-lo na primeira oportunidade e fiquei bastante surpreso com o que vi. Seu Casimiro estava sentado no sofá, trajado com bermuda, um par de muletas repousava ao seu lado e apenas uma perna estava apoiada ao chão. Do outro lado, o coto de um membro recentemente amputado! Então ele me relatou o que havia se passado nos últimos meses desde aquela consulta. Fora a Brasília e os médicos confirmaram o que havia dito anteriormente. Entretanto pediram alguns exames e a fila interminável do SUS o premiou com uma infecção no pé doente. Veio embora para Teresina onde um colega ex-residente do HUWC o recebeu e procedeu com a amputação do membro afetado, dada a sua inviabilidade.

Agora, seu Casimiro apresentava a estranha queixa de sentir, por vezes, a sensação de moscas ou formigas andando por sua perna inexistente. Em outras ocasiões, era acometido por fortes câimbras no mesmo membro. Estava encabulado e até receoso de afirmar tais situações diante de seus familiares, pois temia ser taxado como louco.

O termo membro-fantasma foi citado pela primeira vez pelo médico Silas Weir Mitchell que serviu nas trincheiras da guerra civil americana e atendeu milhares de soldados que apresentavam as mesmas estranhas queixas. Décadas antes, o famoso almirante inglês Lorde Nelson, o qual perdera o braço direito durante uma batalha em 1797, também relatara a sensação da persistência do membro, apesar de não vê-lo. Nessa época, concluiu que a sensação era a prova irrefutável da existência e imortalidade da alma, que persistia a extirpação da carne.

Hoje entendemos o fenômeno de uma maneira bem diferente – longe dessa aura mística – e ficamos maravilhados com as novas descobertas no campo da neuroplasticidade. Numa explicação superficial, nosso cérebro possui áreas delimitadas que recebem/geram estímulos para cada setor do corpo. Quanto mais usamos uma dessas partes (o dedo indicador, por exemplo), maiores serão suas representatividades no córtex cerebral. Da mesma forma, quando percebemos um estímulo (e quanto maior ele for), maior será também sua representatividade no cérebro.

Um pé doente, pouco mobilizado e constantemente doloroso, gera más lembranças ao córtex. Quando amputado, novos estímulos deixam de chegar/sair pelas vias neurais, reforçando cada vez mais o estado doloroso/imóvel do membro. Essa seria uma simplória explicação para as estranhas sensações de um membro fantasma.

Mas os cientistas foram além! Perceberam que ao manipular objetos, nosso córtex se expande e passa a englobar o instrumento, aceitando como algo próprio do corpo. Isso explicaria a perícia dos espadachins e outros guerreiros que praticavam anos e anos com suas armas. Também explica algo mais inusitado ainda!

O coração partido.

No princípio, o amante, inebriado pela presença do ser amado, faz de cada momento juntos uma descoberta. Tudo é curioso, cada detalhe é importante. Nesse período, seus córtices começam a ajustar a fina sintonia que irá caracterizar o casal. O tempo passa e logo o amante se funde ao ser amado, um ser absorve o outro e essa ligação é profundamente marcada em nossos cérebros (corações!). A dor de um passa a ser a agonia do outro. Qualquer sensação se confunde. A distância nos faz sentir incompletos.

Então algo acontece e vem a separação. Ninguém preparou seu cérebro pra isso e, de repente, estamos à mercê do caos. Nada mais tem graça, tudo perde sabor, o coração palpita e a respiração falha. Dói! Dói muito. A paixão – sofrimento – se faz valer na carne. Uma parte considerável daquilo que já lhe definia some de repente, é traumaticamente amputada. Para os amantes, uma dor que não passa, que lhe acorda, que dorme junto e lhe preenche os sonhos. Uma dor para a qual não inventaram analgésicos e, mesmo se houvesse, não seriam aceitos, pois é ela que ainda lhe mantém vivo. A dor é o último resquício da presença do ser amado e perdê-la decretaria o fim de tudo!

Um dia, menos tempo, mais tempo, ela suaviza e se esvai, deixando uma leve cicatriz no coração (cérebro), que ainda pode ser cutucada ou mesmo revisitada. O fantasma não vai embora, apenas adormece.

Texto livremente inspirado nas obras “Muito Além do Nosso Eu” de Miguel Nicolelis e “O Cérebro que se Transforma” de Norman Doidge.

*Nome modificado para preservar a identidade.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Ela, de Novo



Ela voltou! Talvez nunca tivesse ido embora. Estava apenas a espreita, adormecida, aguardando a hora de despertar e lançar seus tentáculos gélidos sobre mais uma pobre vítima. Passava por nós incólume, alheia, oculta. Mas aí chegou seu momento, então surgiu impiedosa, vestindo o negro, foice na mão e o destino selado de alguém.

O assunto é recorrente, contudo nada mais natural na vida do que a morte! A única certeza que temos durante nossa existência, a niveladora de todos os homens. O grande diferencial está na forma como nos entregamos ao fim. Todo o processo conta. Há os que desistem e tomam a iniciativa e há aqueles que lutam bravamente contra a correnteza. Algumas pessoas se desesperam diante da aniquilação enquanto outros se deixam levar serenamente. Uma coisa é fato: no derradeiro momento estamos sós e a dignidade com a qual a enfrentamos é algo muito relativo.

Era uma segunda-feira de dezembro quando fui convidado a visitar o seu Mocim. Assim ele era conhecido. Um senhor franzino, pardo, de orelhas imensas e que morava perto de mim. Eu conhecia toda sua família e até trabalhava com alguns. Sempre que passava em frente a sua casa, estava lá sentado, sorridente, fumando um cigarrinho de palha. O “epa!” era marca registrada de sua figura.

Há alguns dias, estava indisposto, cansado, sem muito apetite, vomitando após pequenas refeições e com as pernas inchadas. Nunca o havia atendido no posto de saúde, até por que se negava a ir, exaltando sua saúde de ferro, mesmo com 76 anos de vida. Conversamos sobre seus sintomas e pedi permissão para examiná-lo. Foi quando o diagnóstico começou a se formular. No abdome, à direita, uma massa grande, dura e irregular ocupava o espaço que pertencia ao fígado. Solicitei alguns exames e, após muito diálogo, eu o convenci a viajar para fazê-los numa cidade próxima.

O resultado chegou na quinta-feira da mesma semana. Junto a ele, todo um processo fascinante, que apenas pequenos municípios oferecem.

Fui ver o seu Mocim em sua casa assim que me desocupei do consultório. Faria esta peregrinação por mais alguns dias até o desfecho da história. O simpático senhor fora acometido por um câncer que lhe tomava grande parte do abdome e estreitava a passagem da comida pelo esôfago. Chegou mais debilitado, por conta da inanição e da viagem. Estava instalado no próprio quarto, seu último refúgio. Junto a minha equipe, tomamos os devidos cuidados para aliviar o sofrimento daquela alma. Oferecemos a possibilidade de uma sonda, a qual foi prontamente negada. Aceitou apenas soro intravenoso, mas também o rejeitou dias depois.

Apesar de todos os incômodos trazidos pelo agravamento do quadro, nunca deixou escapar um “ai” ou lamento sequer. Afirmava categoricamente que estava se sentindo bem sempre que era questionado e negava qualquer medicação oferecida. Sempre o visitávamos pela manhã cedo e ao meio-dia. À noite, acampávamos todos na frente de sua casa até altas horas. Família, vizinhos, amigos, todos compareciam à casa do seu Mocim para se despedir e trazer seus sentimentos. Dessa forma se passaram cinco dias.

Na terça-feira seguinte ele se calou. Passou o dia inconsciente, respirando com sofreguidão. Os ossos já eram visíveis sob sua pele magra. Estirado no leito, lutava bravamente por cada milímetro de ar a que tinha direito. Às dez horas da noite, iniciaram as orações, pedindo que o sofrimento daquele homem tivesse fim e ele pudesse serenamente descansar em paz. Estava a sua cabeceira, estetoscópio ao redor do pescoço, lágrimas nos olhos e acompanhando suas últimas inspirações. Seu tórax subia e baixava cada vez mais devagar. O coração, por toda a vida um bravo, ameaçava reclamar tantos anos de trabalho ininterrupto.

Então acabou.

Pela primeira vez na vida, declarei que alguém estava morto. O sentimento de impotência estava lá, a incapacidade de derrotar a morte – mas, novamente: a cura, o consolo, o alívio! – Assim como a lição do seu Mocim, que enfrentou a morte como lidou com a vida.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O Palhaço


Tudo começa em casa! O seu Fulano* acorda cedinho, talvez tome um banho (pouco provável), coloca a primeira roupa que aparece, toma um café forte, masca um pouco de fumo, olha pro relógio e pensa “acho que já está na hora”. O momento é aquele, o dia escolhido a dedo, tem que ser hoje, não pode passar! Vou sacanear o médico!

Só pode ser isso, não tem outra alternativa!

Digo isso porque não falta semana em que pareço ser feito de palhaço por alguns pacientes. Acordo cedinho, tomo um banho, como algo, me arrumo e vou trabalhar, para a diversão e entretenimento de algumas criaturas que comparecem ao meu consultório!

Apresentado os personagens: o Augusto, ingênuo, que sempre é pego nas brincadeiras do Branco, o espertalhão!

Atenção, senhoras e senhores! Bem-vindos ao maior show da terra, com vocês o palhaço...

Ato 1: Alvoroço na recepção. Seu Fulano* chega exaltado, desesperado atrás do médico. Sua urgência me comove e permito que entre no consultório. Está suado e apreensivo. Traz a mão direita fortemente fechada, segurando algo que está prestes a revelar.

Suspense (que rufem os tambores!):
           
            - O que aconteceu?
            - Estava sentado na frente de casa, conversando com os vizinhos, quando percebi que tinha um mosquito me chupando o sangue. Aí eu trouxe pra ver se é o mosquito da dengue!

A plateia está em polvorosa! Coitado! Mais uma vez o Branco enganou o pobre Augusto!

Ato 2: Quase meio dia, senta uma moça de seus vinte e tantos anos! Aparência serena, tranquila. Ledo engano! Aquela mente perversa estava para aprontar mais uma das suas.

            - O que foi que houve?
            - Dor de cabeça!
            - Você está com dor de cabeça (já vi isso em algum lugar)?
            - Não, agora não! Isso foi há três dias. Agora não sinto nada!

O Augusto parece que vai explodir! Vejam a cara dele, vermelha feito um pimentão! Olha a cara maquiavélica do Branco! Que maldade!

Ato 3: Dessa vez deve ser sério! Uma senhorinha, de seus não-sei-quantos-já-me-esqueci anos, entra a passos lentos, um sorriso de bom-dia, senta e estica o braço na mesa.

            - Queria ver minha pressão!
            - Vamos conversar primeiro e depois eu examino a senhora! A senhora está aqui por quê?
            - Pra me consultar!
            - Certo, mas por quê?
            - Porque tô doente!
            - Certo, doente de quê?
            - Não sei, por isso vim me consultar!

A tensão aumenta! Mas aquele sorriso desdentado explica tudo. Mais uma senhorinha sem muita instrução. Preciso mudar os argumentos se quiser chegar a algum lugar!

            - O que a senhora está sentindo?
            - A meu“fi”, é muita dor!
            - E onde é essa dor?
         - É uma dor que sai aqui do cachaço, corre pela espinhadeira e fica apontando na alcatra! Aí fica saindo de um joelho pro outro a noite toda, chega as veia do braço incha e a cabeça fica assim, olha!

Em que capítulo do livro de semiologia se encontra tal descrição mais engenhosa? O Augusto leva as mãos ao rosto e respira fundo!

            - Deixa eu ver sua pressão!

Aí está! A plateia não se contém e debocha do coitado. Do outro lado, o Branco sorri orgulhoso de mais uma vitória!

Já fui palhaço! Quando universitário, entrei para o fabuloso Projeto Y de Riso, Sorriso e Saúde. Éramos estudantes de medicina, enfermagem e psicologia. Após uma capacitação nas artes do Clown, corríamos pelos corredores do Hospital Universitário trajados de doutores-palhaços, diagnosticando as doenças mais malucas, receitando alegria e tratando com humor e diversão pacientes, acompanhantes e profissionais. Eu era o dr. Grandão! Foi uma breve passagem, na verdade, mas pude ver em ação os encantadores dr. Acerola e dra. Tampinha, a travessa dra. Mentirinha e a doçura da dra. Pinguinho! Sem contar os outros que tanto me cativaram e por quem tenho profunda admiração.

Abandonei o projeto, mas conservei o espírito! Assim como eu, todos os doutores-palhaços da minha época também aposentaram o nariz vermelho, mas preservaram o carinho e atenção que dedicaram especialmente às crianças da ala pediátrica do HU.

A velha brincadeira do Augusto e do Branco se passa diariamente nos consultórios médicos de todo o país. Contudo, os papéis encontram-se normalmente invertidos. Trajados de jaleco, bem arrumados, somos os carrascos Brancos, enquanto nossos pacientes persistem sendo os ingênuos Augustos. A dinâmica deste jogo afeta diretamente como somos vistos pela sociedade. Já passou do momento de diferenciarmos o picadeiro do palco de nossa verdadeira prática!

Chego em casa, lavo o rosto, guardo o nariz vermelho e descanso de mais uma apresentação!

*Nome alterado para preservar minha integridade!