terça-feira, 15 de maio de 2012

Ela, de Novo



Ela voltou! Talvez nunca tivesse ido embora. Estava apenas a espreita, adormecida, aguardando a hora de despertar e lançar seus tentáculos gélidos sobre mais uma pobre vítima. Passava por nós incólume, alheia, oculta. Mas aí chegou seu momento, então surgiu impiedosa, vestindo o negro, foice na mão e o destino selado de alguém.

O assunto é recorrente, contudo nada mais natural na vida do que a morte! A única certeza que temos durante nossa existência, a niveladora de todos os homens. O grande diferencial está na forma como nos entregamos ao fim. Todo o processo conta. Há os que desistem e tomam a iniciativa e há aqueles que lutam bravamente contra a correnteza. Algumas pessoas se desesperam diante da aniquilação enquanto outros se deixam levar serenamente. Uma coisa é fato: no derradeiro momento estamos sós e a dignidade com a qual a enfrentamos é algo muito relativo.

Era uma segunda-feira de dezembro quando fui convidado a visitar o seu Mocim. Assim ele era conhecido. Um senhor franzino, pardo, de orelhas imensas e que morava perto de mim. Eu conhecia toda sua família e até trabalhava com alguns. Sempre que passava em frente a sua casa, estava lá sentado, sorridente, fumando um cigarrinho de palha. O “epa!” era marca registrada de sua figura.

Há alguns dias, estava indisposto, cansado, sem muito apetite, vomitando após pequenas refeições e com as pernas inchadas. Nunca o havia atendido no posto de saúde, até por que se negava a ir, exaltando sua saúde de ferro, mesmo com 76 anos de vida. Conversamos sobre seus sintomas e pedi permissão para examiná-lo. Foi quando o diagnóstico começou a se formular. No abdome, à direita, uma massa grande, dura e irregular ocupava o espaço que pertencia ao fígado. Solicitei alguns exames e, após muito diálogo, eu o convenci a viajar para fazê-los numa cidade próxima.

O resultado chegou na quinta-feira da mesma semana. Junto a ele, todo um processo fascinante, que apenas pequenos municípios oferecem.

Fui ver o seu Mocim em sua casa assim que me desocupei do consultório. Faria esta peregrinação por mais alguns dias até o desfecho da história. O simpático senhor fora acometido por um câncer que lhe tomava grande parte do abdome e estreitava a passagem da comida pelo esôfago. Chegou mais debilitado, por conta da inanição e da viagem. Estava instalado no próprio quarto, seu último refúgio. Junto a minha equipe, tomamos os devidos cuidados para aliviar o sofrimento daquela alma. Oferecemos a possibilidade de uma sonda, a qual foi prontamente negada. Aceitou apenas soro intravenoso, mas também o rejeitou dias depois.

Apesar de todos os incômodos trazidos pelo agravamento do quadro, nunca deixou escapar um “ai” ou lamento sequer. Afirmava categoricamente que estava se sentindo bem sempre que era questionado e negava qualquer medicação oferecida. Sempre o visitávamos pela manhã cedo e ao meio-dia. À noite, acampávamos todos na frente de sua casa até altas horas. Família, vizinhos, amigos, todos compareciam à casa do seu Mocim para se despedir e trazer seus sentimentos. Dessa forma se passaram cinco dias.

Na terça-feira seguinte ele se calou. Passou o dia inconsciente, respirando com sofreguidão. Os ossos já eram visíveis sob sua pele magra. Estirado no leito, lutava bravamente por cada milímetro de ar a que tinha direito. Às dez horas da noite, iniciaram as orações, pedindo que o sofrimento daquele homem tivesse fim e ele pudesse serenamente descansar em paz. Estava a sua cabeceira, estetoscópio ao redor do pescoço, lágrimas nos olhos e acompanhando suas últimas inspirações. Seu tórax subia e baixava cada vez mais devagar. O coração, por toda a vida um bravo, ameaçava reclamar tantos anos de trabalho ininterrupto.

Então acabou.

Pela primeira vez na vida, declarei que alguém estava morto. O sentimento de impotência estava lá, a incapacidade de derrotar a morte – mas, novamente: a cura, o consolo, o alívio! – Assim como a lição do seu Mocim, que enfrentou a morte como lidou com a vida.