Ela
voltou! Talvez nunca tivesse ido embora. Estava apenas a espreita, adormecida,
aguardando a hora de despertar e lançar seus tentáculos gélidos sobre mais uma
pobre vítima. Passava por nós incólume, alheia, oculta. Mas aí chegou seu
momento, então surgiu impiedosa, vestindo o negro, foice na mão e o destino
selado de alguém.
O
assunto é recorrente, contudo nada mais natural na vida do que a morte! A única
certeza que temos durante nossa existência, a niveladora de todos os homens. O
grande diferencial está na forma como nos entregamos ao fim. Todo o processo
conta. Há os que desistem e tomam a iniciativa e há aqueles que lutam
bravamente contra a correnteza. Algumas pessoas se desesperam diante da
aniquilação enquanto outros se deixam levar serenamente. Uma coisa é fato: no
derradeiro momento estamos sós e a dignidade com a qual a enfrentamos é algo
muito relativo.
Era
uma segunda-feira de dezembro quando fui convidado a visitar o seu Mocim. Assim
ele era conhecido. Um senhor franzino, pardo, de orelhas imensas e que morava
perto de mim. Eu conhecia toda sua família e até trabalhava com alguns. Sempre
que passava em frente a sua casa, estava lá sentado, sorridente, fumando um
cigarrinho de palha. O “epa!” era marca registrada de sua figura.
Há
alguns dias, estava indisposto, cansado, sem muito apetite, vomitando após
pequenas refeições e com as pernas inchadas. Nunca o havia atendido no posto de
saúde, até por que se negava a ir, exaltando sua saúde de ferro, mesmo com 76
anos de vida. Conversamos sobre seus sintomas e pedi permissão para examiná-lo.
Foi quando o diagnóstico começou a se formular. No abdome, à direita, uma massa
grande, dura e irregular ocupava o espaço que pertencia ao fígado. Solicitei
alguns exames e, após muito diálogo, eu o convenci a viajar para fazê-los numa
cidade próxima.
O
resultado chegou na quinta-feira da mesma semana. Junto a ele, todo um processo
fascinante, que apenas pequenos municípios oferecem.
Fui
ver o seu Mocim em sua casa assim que me desocupei do consultório. Faria esta
peregrinação por mais alguns dias até o desfecho da história. O simpático
senhor fora acometido por um câncer que lhe tomava grande parte do abdome e estreitava
a passagem da comida pelo esôfago. Chegou mais debilitado, por conta da
inanição e da viagem. Estava instalado no próprio quarto, seu último refúgio.
Junto a minha equipe, tomamos os devidos cuidados para aliviar o sofrimento
daquela alma. Oferecemos a possibilidade de uma sonda, a qual foi prontamente
negada. Aceitou apenas soro intravenoso, mas também o rejeitou dias depois.
Apesar
de todos os incômodos trazidos pelo agravamento do quadro, nunca deixou escapar
um “ai” ou lamento sequer. Afirmava categoricamente que estava se sentindo bem
sempre que era questionado e negava qualquer medicação oferecida. Sempre o
visitávamos pela manhã cedo e ao meio-dia. À noite, acampávamos todos na frente
de sua casa até altas horas. Família, vizinhos, amigos, todos compareciam à
casa do seu Mocim para se despedir e trazer seus sentimentos. Dessa forma se
passaram cinco dias.
Na
terça-feira seguinte ele se calou. Passou o dia inconsciente, respirando com
sofreguidão. Os ossos já eram visíveis sob sua pele magra. Estirado no leito,
lutava bravamente por cada milímetro de ar a que tinha direito. Às dez horas da
noite, iniciaram as orações, pedindo que o sofrimento daquele homem tivesse fim
e ele pudesse serenamente descansar em paz. Estava a sua cabeceira,
estetoscópio ao redor do pescoço, lágrimas nos olhos e acompanhando suas
últimas inspirações. Seu tórax subia e baixava cada vez mais devagar. O
coração, por toda a vida um bravo, ameaçava reclamar tantos anos de trabalho
ininterrupto.
Então
acabou.
Pela
primeira vez na vida, declarei que alguém estava morto. O sentimento de
impotência estava lá, a incapacidade de derrotar a morte – mas, novamente: a
cura, o consolo, o alívio! – Assim como a lição do seu Mocim, que enfrentou a
morte como lidou com a vida.