Emoldurando esse quadro, a Caatinga.
Ainda estudante, guardava um grande preconceito
quanto a esse bioma. Era ignorante. Nasci na caatinga e lhe neguei o feito.
Desdenhava de suas matas secas, de sua aridez. Contudo, convivendo nesse
habitat, passei a conhecê-lo. Digo mais, passei a admirá-lo. Vivendo em seus
domínios, pude admirar sua beleza e respeitar sua importância. Da mesma forma,
também pude conhecer o sertanejo, esse indivíduo que sobrevive em condições
extremas e que tem como recompensa nosso desdém pseudocivilizado.
Lembrei Euclides da Cunha, que nos últimos anos do
século XIX foi designado a acompanhar a Guerra de Canudos no sertão da Bahia.
Voltando do conflito, publicou o livro Os Sertões em que descrevia o cenário,
os habitantes e o andamento da guerra – A Terra, O Homem e A Luta. Quero me
ater aos dois primeiros tomos do livro.
Escrevendo numa linguagem hermética, caprichada de
termos técnicos mesclados a neologismos, Euclides pinta um quadro do sertanejo
e seu lar com profundo tom determinista e generosas doses de racismo. Até hoje
observamos a influência de suas palavras quando assistimos aos repetidos
episódios de ataques a nordestinos, seja nas ruas ou em redes sociais.
Eis as palavras imortais de Euclides sobre o homem:
O sertanejo é, antes de tudo, um forte.
Essa
oração diz tudo sobre o homem que vive na caatinga. De certa maneira ele se
confunde com a vegetação, feia, tortuosa, dura, espinhosa. Mas traz em seu
âmago um poder transformador inigualável, uma fé inabalável, uma energia
imensurável. Pouco afeito as palavras, passa por rude. Não tem os modos que
criamos para parecermos melhores. Escondem as mãos sujas e calejadas do
trabalho. Desculpam-se por não ter roupas melhores ou por não oferecer algo
melhor que água – seu bem mais precioso.
Então
se transmutam. Vestem o gibão de couro e tornam-se heróis, desbravando a mata
intrincada atrás de uma rês perdida. Suportam horas de sol quente nas costas
para arar a terra e dela tirar seu sustento.
Seu
lar é tão surpreendente quanto. Uma vastidão marcada por áreas de chapadas, depressões
e elevações. A vegetação xerófila inclui desde gramíneas, arbustos e árvores. O
mandacaru e o xique-xique são elementos comuns em sua paisagem. O solo varia do
cascalho ao arenoso. Sua fauna é rica e desconfiada. Vive a espreita da onça
pintada e do caçador. Por vezes, são vítimas do fogo, que se espalha como o
vento por suas paragens. Alguns pontos convivem com seca intensa enquanto
outras são intermitentemente abençoadas com chuvas. Euclides observou na época
que a caatinga sofria com grandes temporadas de seca em períodos cíclicos de 9
a 12 anos que podiam ser recontados desde o século XVIII.
Apesar
de todo o sofrimento trazido pela estiagem, fui agraciado com o incrível
espetáculo de cores proporcionado pela natureza. As plantas verdinhas, ao longo
dos meses, foram mudando seus matizes, trocando seus trajes verdejantes por
cores quentes. Logo suas folhas irradiavam um amarelo que aos poucos encandeceu
num vermelho vivo. No mesmo período, a incapacidade de sustentar tantas folhas
com o escasso alimento fornecido pela terra fazia com que elas fossem liberadas
e forrassem o chão, tornando a mata num cemitério de caules brancos (caa =
mata; tinga = branca; do tupi).
Esse
fenômeno se repete periodicamente e ilustra de maneira soberba o ciclo da vida
e a importância da água nessa região. Basta caírem as primeiras gotas de chuva
e a mata recupera seu manto esmeralda.
Da
janela do carro, tentava ver o mais adentro da mata o possível. Tarefa absurda.
Mesmo desprovida de folhas, a vegetação é intrincada, hermética como as
palavras de Euclides. Não se conhece a caatinga por palavras. As verdadeiras
ainda não existem para descrevê-la. Tampouco se conhece um sertanejo por
livros. Apenas a convivência permite.
Deixo
meus sertões modificado, um pouco mais calejado, a pele mais dura. Volto para
casa maravilhado e saudoso com o que vivi. Uma experiência única, que
humildemente tentei transformar em palavras.