sábado, 19 de novembro de 2011

Eu, a TV e seu Irandir


O intelectual e desertor da medicina Apparício Torelli, mais conhecido como Barão de Itararé, emprestou-me essas palavras: a televisão é uma das maravilhas da ciência da humanidade a serviço da imbecilidade humana. É claro que concordei! Quem se presta a conferir as atrações das principais emissoras deste país não encontrará nada melhor que novelas absurdas, programas de auditório tolos e sangue. Nossa persistência em frente a telinha ainda nos premia com algumas partidas de futebol ou um filme minimamente decente.
            
Mas como sinto falta!

A televisão emburrece, contudo pode ser um veículo primoroso de educação. Canais fechados como Discovery, National Geografic, A&E entre outros sempre trazem bons documentários, mostrando passado, presente e tendências futuras nas diferentes áreas de pesquisa. Mas essa é uma realidade que não me pertence mais. Estou isolado no sertão nordestino, convivendo com uma TV que só pega estática e, às vezes, a rede do bispo. Crueldade!

O lado bom? Tempo! Se a TV emburrece, a sua falta me forneceu muito tempo para me dedicar aos livros, dar passeios, conversar com vizinhos e outras...! Plena quarta-feira de cinzas e não faço ideia de quem venceu o carnaval, quem ganhou nos campeonatos estaduais ou o que se passa no mundo! Se por acaso ele acabar, por favor, alguém mande me avisar!

***

Como toda cidade do interior, Guaribas guarda suas figuras excêntricas. Conversando com vizinhos ou tomando relatos pessoalmente, conheci algumas histórias dignas das melhores comédias. O seu Irandir*, por exemplo: magrinho, 62 anos, fumante inveterado de cigarro de palha. Anda sempre em companhia de sua cadela, a qual negou um nome, mas que sempre segue seus passos e faz questão de avisar quando é hora de voltar pra casa.

Conversando com a turma em frente de casa, ele relatou um dos acontecimentos mais bizarros que já ouvi! Com a fala rouca e os olhos trocados (vesgo que só ele!), puxou uma folha de caderno do bolso para confeccionar um novo cigarro enquanto proseava. Contou que na sua juventude, viu todos os seus amigos se casando e decidiu que faria o mesmo. Arranjou uma mocinha e casou de prontidão. Semanas se passaram e resolveu confidenciar para um colega:

            - Olha que não entendi esse gosto de casar de vocês. Casei também e não vi vantagem ainda!
            Seu colega, sobressaltado, indagou:
            - Oh! Oh! Oh! A gente casa é pra "usar" a mulher! Câ tá é atrapalhado! Cê já "usou" a sua?
            Ingênuo, seu Irandir tomou um susto!
            - Vixe Maria! Usar pra quê, tolo?

Neste instante, quase não suportei de tanto rir! Seu Irandir prosseguiu com a história, dizendo que seu colega o ensinou passo-a-passo como devia fazer com sua mulher. Desde então, entendeu finalmente o porquê de casar! Aí sua cadela latiu e os dois tomaram o rumo de casa.

*Nome alterado para preservar a identidade.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Sabedoria


Desde que tomei um olhar crítico sobre mim mesmo (belas palavras colhidas do filme Meu Nome não é Johnny, 2008, mas de autoria da escritora belga Marguerite Yourcenar), tenho de certa forma tentado trilhar um caminho que me leve a sabedoria! Encontrar o caminho do meio, como fez Sidarta milênios atrás me pareceu uma bela justificativa para esses anos que passamos sobre a superfície deste singelo planeta. Qualquer outra explicação para o sentido de nossa existência foi prontamente negado, a não ser que alguém encontre a pergunta certa cuja resposta é 42. Aí talvez as coisas mudassem, mas até lá, caminho do meio.

A primeira tarefa seria me despojar dos pecados capitais, entre eles o pior, a vaidade, mas deixemos esse assunto para outro texto. O segundo passo seria descobrir o que faz de um homem uma pessoa sábia. Empolgado, corri atrás de conselhos e textos destes ilustres e fiquei assombrado com o que encontrei: silêncio!

Como poderia o mutismo ser a resposta para minhas angústias? Mas está lá e os antigos já sabiam. O silêncio é a virtude que nos evita falar ou ouvir tolices. Bom provérbio para começar! A regra número um seria conservar as palavras bem guardadas. Palavra é flecha lançada. Jamais volta! Ano passado, cometi uma injustiça contra uma colega, comentando levianamente que ela teria fraudado um concurso. Já a conhecia há 6 anos e sabia de antemão que a garota não seria capaz de cometer um ato tão absurdo. O certo é que me arrependo amargamente de tal fato e ainda me envergonho do acontecido.

Muitas vezes se diz melhor calando que falando em demasia. A fofoca nasceu de uma série de acontecimentos que me levaram a julgar precipitadamente. Conversei com 3 ou 4 pessoas sobre isso e esqueci. Meses depois, a garota me procurou e falou sobre o assunto. Um banho de água fria! Quem fala o que quer, ouve o que não quer. Desculpei-me, mas ficarei marcado como tolo. Pessoas não abrem a boca para elogios, mas para depreciação. Por 6 anos comentei como a achava bela, inteligente, legal. Apenas as ofensas chegaram aos seus ouvidos.

Quando falares, cuida para que as palavras sejam melhores que o silêncio; Quantas vezes devemos errar para dar crédito a esses ensinamentos? Ford Prefect (O guia do Mochileiro das Galáxias, Douglas Adams) acreditava que os seres humanos falavam sem parar com a finalidade de evitar ouvir os próprios pensamentos. Tagarelar para esconder o quão vazio os são? Temos dois ouvidos e uma boca. Ouçamos mais e falemos menos.

Outro provérbio interessante fala assim: nascemos com olhos fechados e boca aberta; vivemos tentando consertar este erro da natureza. Acredito que este é um atributo dos sábios. Durante 2 semestres da faculdade, tivemos aula com o Dr. Rino, padre e psiquiatra, o qual persistiu para que compreendêssemos a importância de escutar o que os outros tem a dizer, não importando a origem do discurso: professor, colega ou paciente. De certa forma era um tanto triste notar uma ponta de frustração do mestre ao final de cada aula. Nossa cultura ocidental não tolera o mutismo e se afoga nas próprias palavras! A sabedoria vem de escutar; de falar, vem do arrependimento.

Os espartanos sustentaram uma sociedade que prezava as poucas palavras. Sábios, entediam que elas pouco valiam. Um grama de exemplos vale mais que toneladas de conselhos. Um ato que vale por mil palavras. Não sou partidário do mutismo total. Não teríamos abandonado as savanas, construído ferramentas e viajado ao espaço se negássemos este dom, mas tal habilidade é diariamente massacrada pelas ruas, rádios, TVs e outras mídias. A palavra é prata, o silêncio é ouro. Estamos nos perdendo por pouco!

Pega-se o touro pelos chifres; o homem pelas palavras. O complemento deste provérbio ainda diz: e a mulher pelo elogio; Arrisco a dizer que a vaidade nos leva facilmente a soltar a língua. Humildade é outro atributo dos sábios. Assunto polêmico! Não sou humilde. Não dá maneira que as pessoas acreditam ser humilde. Não diminuo minhas façanhas, não nego o que sei nem escondo sobre falsa simplicidade minhas proezas. Está certo que nunca fiz grande coisa (não é falsa humildade), mas planejo grandes coisas para minha vida. Sonho alto pra não esquecer meus sonhos! Aprendi que cada pessoa tem sua régua para medir seus atributos e ambições. O mais difícil seria entender que minha régua não se aplica a vida dos outros.

Duro caminho para sabedoria! Bem longe mesmo de alcançar. O mais interessante é que não vivemos para sermos apontados como sábios. Enquanto vivos, estamos propensos a cometer todos os erros possíveis. Somos pontuados pela dimensão dos erros! Viva o Ocidente! Temos que morrer para computar a fatura e só assim, sermos categorizados: comum, tolo, sábio. O homem comum fala, o sábio escuta e o tolo discute.

Tão importante quanto ouvir é criticar o que se ouve. Aí não seríamos sábios, mas tolos mudos! Da mesma forma, devemos estar preparados para falar a coisa certa na hora apropriada. Albert Einstein disse que o mundo não estava ameaçado pelas pessoas más, mas por aquelas que se calam diante das maldades. Diga a verdade e saia correndo. Antes acreditava que a sabedoria era uma qualidade da velhice e esta, um bônus da covardia. Antes um covarde vivo que um bravo morto. Os conselhos de anciões, ponderados, sábios das aldeias, não comportavam jovens, sempre tão impulsivos. Mas para ser um ancião, deveria ter sido um grande guerreiro! Os covardes ficavam pelo caminho. Daí então um novo atributo do sábio: bravura!

Os sábios não dizem o que sabem, os tolos não sabem o que dizem. Mas o que realmente sabemos? A verdade é apenas a constatação de um fato. Não acrescenta valor. Silêncio, atenção, prudência, auto-crítica, humildade e bravura são os grandes atributos de um sábio. Também seriam as características ideais para qualquer ser humano, caso fôssemos afeitos a ensinar bons costumes aos nossos filhos.

Termino então assim: Sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância. Quando olhamos através das lentes de microscópios ou de telescópios, nos deparamos com universos infinitamente minúsculos ou grandiosos, que superam nossas capacidades de compreensão. O que realmente sabemos? Vivemos colecionando informações apenas para constatar quão ignorantes somos. Daí, um sábio por fim poderia chegar à decepcionante conclusão de que não passa de um tolo!

Regra número um: calado!

sábado, 3 de setembro de 2011

Sobre Pais e Livros


Fyodor Pavlovich Karamazov era um crápula. Um beberrão inveterado, afeito a todas as práticas e vícios condenados em qualquer sociedade possível. Emergiu incólume de dois casamentos, nos quais deixou 3 filhos e mágoas profundas. Em sua magistral obra, Fyodor Dostoyevsky relata os abusos cometidos pelo bufão, esmiúça as personalidades intrigantes de seus filhos e tem como desfecho o parricídio e a procura pelo culpado dentro da família Karamazov.

Mas este texto não é sobre o livro, mas por que interrompi sua leitura pela terceira vez em 6 anos! Para ilustrar melhor, tomaremos um novo rumo.

Em 1927, o pai da psicanálise, Sigmund Freud, lançou no ensaio Dostoievsky e o Parricídio as    primeiras impressões registradas na literatura sobre o comportamento masculino no complexo de Édipo. Para sustentar sua argumentação, apoiou-se sobre três grandes obras, a saber: Édipo Rei, de Sófocles; Hamlet, de William Shakespeare e claro, Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky.

O escritor grego relatou em sua tragédia o drama do rei homônimo que, cumprindo uma profecia antiga, assassina o pai e desposa a mãe. Ao tomar conhecimento da condição de marido da própria genitora, fura os olhos e parte pelo mundo como mendigo, a fim de espiar seus pecados.

Na outra obra, o dramaturgo inglês conta a história do príncipe da Dinamarca, Hamlet, que tem o pai assassinado pelo tio, o qual usurpa seu trono e toma sua mãe como rainha. O espectro do pai lhe aparece cobrando vingança, tarefa encarada com amargura pelo príncipe.

A perda do pai é a ação central das três obras. Entretanto, as intrigas geradas pelo ato são o verdadeiro motivo da excelência delas. Sófocles discorre sobre o tabu social do incesto, a culpa pela consumação do ato e as medidas desesperadas adotadas pelas personagens como punição. Shakespeare vai mais fundo mostrando a angústia de um filho frente ao enfrentamento do tio assassino. Por que Hamlet exita tanto em desferir o golpe fatal sobre o algoz de seu pai? A fúria com que cai sobre outros inimigos não é a mesma dedicada ao tio.

Já faz alguns anos que vivo um drama semelhante aos dos irmãos Karamazov. Cada vez que iniciei a leitura do livro, via estampada em suas páginas os sentimentos negativos cultivados pelo convívio conflituoso com meu próprio pai. Daí, não via outra solução senão fechar o livro e legar-lhe mais uma temporada de ostracismo em minha estante.

Admito que nem sempre vivemos de rugas. Houve uma época em que o considerava, como qualquer criança, meu herói. Contudo os anos passaram e com eles foi embora a venda que me impedia de enxergar a verdadeira figura de meu pai. Não obstante, perdi outras referências que usava como fortaleza e modelo a seguir. Da mesma forma, encontrei-me homem feito, irmão mais velho e protetor de minha família. Matei meu herói e lhe tomei a esposa. Quando dei por mim, encarnava o complexo de Édipo.

Os meses de distância permitiram que tomasse um olhar crítico a respeito de minhas atitudes e chegasse a essas conclusões, mesmo que imprecisas ou exageradas. Hoje assumo atitudes diferentes com relação ao convívio com meus pais. Entendi minha posição dentro da família, assim como minhas responsabilidades. Não fecho os olhos para o passado, entretanto tento ser mais cauteloso quanto ao futuro. Ainda não tive coragem de reabrir “Os Irmãos Karamazov”, mas pretendo um dia terminar sua leitura e encontrar novas respostas para esse dilema tão antigo.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Curar sempre, aliviar quando puder, consolar quem?

“Curar quando puder, aliviar quase sempre, consolar sempre”. As sábias palavras de Hipócrates atravessaram milênios como exemplo da boa prática. Interessante como parecemos esquecer essas orações neste século. Avançamos a passos largos sobre inúmeras doenças cujo prognóstico reservado nos forçava buscar um alento ao paciente. Hoje temos a chave da cura de muitas moléstias, contudo ainda somos limitados pela nossa natureza humana de estreito espectro quanto a muitos aspectos da vida, especialmente quando se trata do término dela.

Nas aparências, a morte deixou de ser uma companheira natural das enfermarias e consultórios para se tornar um tabu. A tanatologia, estudo da morte, se desenvolveu nas últimas décadas, mas permanece confinada aos recônditos de nossas bibliotecas. A psiquiatra suíça Elisabeth Klüber-Ross descreveu em 1969, no livro “Sobre a Morte e o Morrer”, as várias etapas que atravessamos diante da perda ou do enfrentamento do próprio fim. Seriam estas, numa ordem uma tanto flexível, a negação, raiva, barganha, tristeza e aceitação. Suas primeiras palavras foram “O que os doentes terminais têm a ensinar a médicos, enfermeiros, religiosos e aos próprios parentes”.

Neste ponto, volto dois anos atrás, quando ainda interno, na emergência do Hospital do Coração. Fui imerso num ambiente onde reinava a negação. A todo o momento, víamos alguém morrer, vítimas especialmente de infartos. O doente chegava, praticávamos as manobras de ressuscitação, anunciávamos a hora da morte e nos deslocávamos para as lanchonetes. Nada era discutido. Nossos pensamentos se voltavam para as partidas de futebol na TV, uma festa no fim-de-semana ou a próxima piada.

Meses depois, estava lotado na enfermaria de cardiologia do HUWC e fui encarregado de um paciente chamado José*. Era um simpático senhor de 69 anos, evangélico, animado e com uma família sempre presente, ladeando seu leito. Fora acometido por um câncer prostático e, durante tratamento, descompensou de uma insuficiência cardíaca até então desconhecida. Eu o conheci durante a cineangiocoronariografia. No laudo, várias lesões de tronco de coronária, tornando-o candidato a revascularização cirúrgica. Nos exames pré-cirúrgicos, uma ultrassonografia evidenciou múltiplas nodulações hepáticas sugestivas de metástases. Não podia operar o coração devido ao câncer e não podia tratar a próstata devido ao coração. Estava condenado. Relatório de alta e encaminhamento para manejo clínico paliativo. Morreu em fevereiro do ano seguinte.

Um ano se passou e estava encarregado de outra paciente na enfermaria cirúrgica. Dona Maria*, 43 anos, voltava para o “second look” após várias sessões de quimioterapia devido a um câncer de ovário. Durante operação, a cavidade abdominal fora revisada, destacando-se a ausência de câncer visível e possível cura. No pós-operatório, começou a apresentar febre, dispnéia e foi iniciado antibioticoterapia para infecção de sítio cirúrgico. Morreu de sepse 4 dias depois.

Em todas as situações descritas acima, eu era apenas um estudante. Minhas atribuições envolviam colher a história dos pacientes, executar um exame físico minucioso, avaliá-los diariamente, correr atrás de exames ou pareceres e estudar muito para discutir cada caso. Um dia era cardiopatia, noutro câncer, vasculites, pneumonias, AIDS, enfim, uma gama de morbidades que por vezes guardavam entre si apenas o desfecho: a morte. Mas a impressão que sempre ficava era a negação deste fato. Como lidar com a morte? Enquanto outros jovens estudavam direito, engenharia ou letras, estávamos lá, lutando contra a morte. Obviamente, havia aqueles internos que alcançavam os demais estágios descritos por Klüber-Ross, mas muitos permaneciam negando.

O tabu permanece. Derrotas são inaceitáveis neste mundo novo, onde apenas o sucesso é permitido. Falhas devem ser ignoradas e esquecidas. Erramos todos os dias negando que a morte deve ser vencida a qualquer custo e pecamos ainda mais quando não trazemos esta discussão para os novos médicos que se formam nos hospitais universitários deste país. A cada turma formada, perpetuamos a ignorância quanto ao fato monumental que recai sobre nossos ombros. Saímos em muitos aspectos imaturos quanto aos desafios de nossa prática. O campo de trabalho por vezes nos dará as lições erradas e até mesmo aprenderemos, contudo da maneira mais difícil.

Nos casos descritos, não houve cura. De certa forma, nosso empenho fora premiado com o alívio do sofrimento. Entretanto, a máxima do consolo, esta talvez também devesse ser dirigida também a nós, estudantes.

* Nomes alterados para preservar as identidades.

domingo, 3 de julho de 2011

Casamento

O ócio perturbador me arrasta por devaneios insanos, fazendo-me chegar a conclusões espúrias sobre coisas sem sentido e tudo o mais! Entendeu?

Tenho muito tempo livre. Preencho com várias atividades e sobra tempo, então penso. Esse é o problema! Na maioria das vezes são pensamentos rápidos, sem importância. Outras vezes, levo horas matutando coisas grandes, também sem importância, mas que chegam a algum ponto maluco e, por ventura, a estas linhas. Aqui vai um deles!

A prática da medicina é como um casamento (palavras de um inexperiente). O noivo é o médico (sem chauvinismo, juro!). A noiva, obviamente, é o paciente. É um casamento que pode vir de forma natural, o amor pela profissão, ou mesmo arranjado, pelos pais do noivo, é claro. Há até os casamentos forçados! Terminada a cerimônia, o grande baile, cada um vai pra casa cuidar de seu matrimônio. O consultório é o quarto (ou a cozinha, cada um com suas manias). É lá que o relacionamento se desenvolve, cresce, amadurece e, por vezes, acaba.

Como todo relacionamento, ele é baseado no diálogo! Se houver uma boa dinâmica, ele flui perfeitamente para o deleite de ambas as partes. Quando pouco, termina de maneira muitas vezes dolorosa (voltaren® ou benzetacil®). Para que dê certo, tem que saber as procedências, se a idade é compatível, algumas coisas do passado, conhecer a família, onde mora, se gosta de bichos, se tem filhos. Passado tudo isso, chegamos ao clímax! O exame físico. Quando bem executado, tira-se grande proveito e agrada as duas partes.

Não existe casamento igual. Em alguns o diálogo não existe, apenas ação. Em outros, falta ação! Há aqueles baseados na aparência, os unicamente registrados por imagens, os que te botam pra dormir e aqueles que só querem teu sangue! Também existem as falhas. O que dizer de um casamento baseado em mentiras? Há médicos que prometem tratamentos miraculosos, assim como pacientes que inventam doenças mirabolantes. Resultado disso, fracasso a vista.

Terminado o processo, havendo honestidade e dedicação, os frutos do casamento são doces e vistosos! Por fim, lá no finalzinho, um bom médico pode fazer uma retrospectiva saudável de sua prática e constatar como foi feliz em seu casamento!

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Luto

Dia de visita domiciliar. No itinerário, dona Esmeralda*, uma senhora de 53 anos. Há exatamente 2 meses, sua filha Carmen*, de 19 anos, morreu de forma repentina após um quadro febril associado a intensa cefaléia. Desde então, Esmeralda passava os dias triste, chorando, sem se alimentar. Não mais saía de casa nem se interessava por mais nada que ultrapassasse a soleira de sua porta.

Uma semana antes da visita, a irmã de Esmeralda, recém chegada de São Paulo, foi ao meu consultório com o único objetivo de solicitar uma visita à irmã. Chegou mesmo a propor uma remuneração para tal. Após os devidos esclarecimentos sobre os procedimentos para agendar uma visita, inclusive da não necessidade de honorários, firmei compromisso e hoje saí para cumpri-lo.

Mas o que dizer a uma mãe que perdeu uma filha dessa maneira? A faculdade, os livros, nada ensina. A vida pode empregar suas lições, mas o que teria consolidado em médico recém-formado? Mergulhei em busca de esclarecimentos nas diversas publicações sobre o tema e a única resposta encontrada foi: uma dor que nunca passa. Nada substitui a vida perdida de um filho. Crescemos na certeza de que um dia não teremos os avós e pais por perto. Contudo ninguém está preparado para a brutal quebra de um elo como a morte de um filho. Esse não é o caminho natural. Extrapolando, é a subversão da natureza.

Frustrado pela constante negativa em minhas pesquisas, levei comigo a única saída que me restava, a honestidade. Cheguei à casa de dona Esmeralda por volta das 16h e lá permaneci por quase uma hora. Perguntei como ela se sentia, revelei o motivo de ter ido lá, incluindo o pedido da irmã, e disse que não sabia o que dizer naquela hora. Fui sincero por que vi uma mãe em pedaços. Escutei com atenção seus relatos sobre o dia fatídico, perguntei como era sua filha e conversamos brevemente sobre os últimos dias. Por fim, conclui pedindo para que Esmeralda desse um passo a mais a cada dia.

Retornar a rotina pode ser algo impossível, mas a vida continua. O vazio vai ficar lá e andar pode ser a única maneira de mantê-lo num nível minimamente aceitável. Despedi-me acertando novo compromisso de revê-la em breve, com a certeza de que talvez em nada tenha alterado o sofrimento daquela mãe, mas de alguma forma, tenha implantado a semente de dias menos escuros porvir.

*Nome alterado para preservar a identidade.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Cajueiro

O Cajueiro é uma das experiências mais interessantes e, em níveis quase intoleráveis, estressantes, dessa minha passagem por Guaribas. Trata-se de um povoado situado a cerca de 30 km da sede do município, contudo exige uma viagem de no mínimo uma hora e meia, passando apenas por estradas carroçais em que apenas carros de motor forte passam. É uma região pobre, com moradores em sua maioria analfabetos e mocinhas gestantes.


Chama atenção também devido a maioria dos casais serem consangüíneos. Isolados deste jeito, não seria absurdo casarem-se com primos de 1º ou 2º grau. Tal fato fica bem evidenciado pela escassez de sobrenomes. Diversidade é a chave, já dizia Darwin, mas nesse caso, a falta dela é a perdição. Fiquei impressionado com a quantidade de moradores com distúrbios neuropsiquiátricos, variando da epilepsia, passando por déficits mentais até suicidas!


Num domingo antes da segunda viagem ao Cajueiro, conheci uma senhora de 48 anos que chegou até mim implorando por um atestado médico para se aposentar. Na verdade a conheci inconsciente, já que tinha acessos de síncope motivados por fortes emoções. Os parentes a trouxeram já com um diagnóstico obscuro de epilepsia e mostrando medicações que em nada ajudariam caso fosse verdade. Pedi que se acalmassem, esperei a senhora se recuperar e solicitei que a levassem até o consultório neste dia. Então ela veio!


Assim que o carro chegou à unidade de saúde do Cajueiro, ela desmaiou novamente. Seu pai, um senhor nervoso, veio correndo até mim para que a atendesse de prontidão, desprezando os outros pacientes que já me aguardavam desde cedo. Fui até a mulher inconsciente e, assegurado de que logo estaria acordada, comecei as consultas respeitando a ordem de chegada. Uma hora se passou até que ela adentrasse meu consultório. Saí detrás da mesa, sentei ao seu lado e conversamos.


Dona Clotilde* tinha uma face muito abatida, como se tivesse passado por muitas tragédias ao longo da vida, o que logo se mostrou verdade através de seus relatos. Sempre que perguntava sobre algum fato passado, ela prontamente negava lembrar-se, contudo, com um pouco de paciência, sua história foi se revelando. Sentia uma tristeza profunda em decorrência da morte de 2 irmãos, que lhe eram muito próximos. Não se recuperara do luto e passou a ter alucinações auditivas e insônia. Quando a angústia chegava ao limite, o que já acontecia freqüentemente, desmaiava.


Conversamos por um longo tempo, para irritação dos outros pacientes que esperavam no lado de fora. Troquei uma das medicações das quais fazia uso e adicionei outra para completar o tratamento farmacológico. Despedi-me de dona Clotilde e a deixei a vontade para me procurar novamente caso precisasse. Um mês se passou para que voltasse a vê-la. Já não era a mesma mulher que encontrara desmaiada semanas atrás. Já assumia uma postura mais confiante, não perdia mais a consciência e não chorava mais como antes. Sorria com certa desenvoltura e seu discurso já era preenchido com palavras mais alegres.


As drogas que prescrevi certamente tiveram seu quinhão neste sucesso. Entretanto dedico a vitória deste caso as palavras de um dos meus mais estimados mestres, o padre e psiquiatra Rino. Dentre suas maravilhosas lições, a capacidade de ouvir o que os pacientes tem a dizer foi uma das mais valiosas para o exercício desta profissão. O diálogo é a base para compreensão, e deveríamos zelar por sua adoção em todos os aspectos de nossas vidas.


Por fim, são casos como esses que fazem tudo valer a pena. Quando acordo as quintas-feiras e me deparo com a entediante viagem ao Cajueiro, procuro lembrar-me de dona Clotilde. Um novo sorriso que consegui garimpar num lugar tão abandonado. Se conseguir extrair mais um da próxima vez, estarei cumprindo meu papel de tornar este mundo um lugar um pouquinho melhor de se viver.

*Nome alterado para preservar a identidade.

sábado, 30 de abril de 2011

Vida Nova ou Ignorância

Estas são as primeiras palavras que escrevo em meses. Durante este período de ostracismo, revoluções ocorreram na minha vida. Pela primeira vez, após mais de 20 anos, deixei de ser estudante profissional. Deixei minha casa e resido a mais de 1000 Km de meus pais, em uma simpática cidadezinha no interior do Piauí, meu querido estado natal.


Larguei as letras por que não me julgava merecedor delas. Iniciei um blog para ajudar a escrever meu primeiro livro e estanquei! Exprimi o que podia e nem uma sílaba caiu sobre estas teclas. Então resolvi abandonar temporariamente este ofício e me dedicar a minha nova profissão. Fui graduado em dezembro de 2010 e logo tive a oportunidade de retornar ao Piauí. Um mês se passou entre propostas, CRM, sindicato e cá estou eu, médico do município de Guaribas.


A chegada já foi um tanto impactante. São 12 horas de viagem até a cidade mais próxima, chamada Caracol, e depois mais 1h30min de viagem em estradas de pedra, areia e lama. Nacionalmente famosa pela implantação pioneira do programa Fome-Zero do governo federal, Guaribas acomoda cerca de 4 mil habitantes, distribuídos entre a sede e outros povoados, por vezes bem distantes e de difícil acesso.


Sua população é bastante peculiar, formada por apenas algumas famílias, já denotando alguns dos problemas de saúde que enfrentaria por aqui. São bem acolhedores e simpáticos em sua maioria. Os mais velhos são quase todos analfabetos ou tem baixíssima escolaridade. Os mais novos contam com uma excelente unidade de ensino de tempo integral, alcançando boas colocações no último Enem. Estava traçado o perfil das pessoas que encontraria por aqui. Agora faltava colocar a mão na massa e trabalhar!


No princípio, era governado pela insegurança! Conhecia o conteúdo, mas estava alheio ao impacto causado pelas minhas condutas. O carimbo e as decisões agora me pertenciam, então a responsabilidade foi aumentada exponencialmente. Antes, na faculdade, raramente tinha a oportunidade de rever os pacientes ambulatoriais. Hoje isso é uma constante! Pior, os pacientes agora são meus vizinhos e colegas.


Cheguei impregnado de incertezas e empolgação. Há sete dias venho praticando a boa e velha medicina que aprendi durante os últimos 6 anos. Uma semana na qual passava as noites  em claro, temendo fazer alguma bobagem dantesca. Acordava com os livros e dormia sob sua guarda. Durante o serviço, tentava de todas as formas manter um tom de voz firme para não demonstrar a enorme insegurança que me assolava. Mas fui levando e aos poucos, conquistei certo domínio sobre minhas ações.


Hoje faço uma avaliação retrospectiva. Não minha, pois ainda não tive tempo de contemplar minha prática, mas uma avaliação da maioria dos acontecimentos que se passaram em meu consultório esta semana.


Ignorância! Uma das palavras mais feias que existe, tanto pelo seu significado quanto pelas pessoas a quem ela se aplica. Neste caso, estaria falando de uma grande parcela da população mundial (quem sabe não estou incluído nesta conta!). Somos ignorantes quando desconhecemos algo, quando tratamos alguém/algo de forma rude e quando nos negamos ser esclarecidos!


Ignorância! Meu amigo Chico Iure falou de forma esclarecida quando afirmou que preferia ficar na capital, onde as pessoas entendem o que ele fala. É muito deprimente falar com o paciente, mesmo no linguajar mais básico possível, e receber o silêncio como resposta, pela simples incapacidade dele em compreender o português. Infelizmente, essa é um constante nestas bandas. O povo carece de cultura. Moldados a sol e enxada, sucumbem nas artimanhas da língua.


Ignorância! Foram por anos impedidos de usufruir de seus direitos. Foi com muita comoção que ouvi uma das pacientes reclamar de minha demora durante as consultas. Ela afirmava que apenas consultas particulares deveriam demorar tanto. No serviço público, deveria ser o mais breve possível.


Ignorância, a palavra de hoje! Agora me invisto de autoridade para qualificar de estúpido um médico que se serve da assistência pública para propagar tal idéia. Atender 500 pacientes numa manhã é uma falta de respeito (e canalhice) sem tamanho. Justificar tal prática sob o argumento de que é público torna a afirmação mais absurda ainda.


Ignorância, minha palavra preferida nestes tempos! Talvez seja bem empregada em meu estado de espírito atual. Contudo, posso garantir que é apenas um estágio inicial, de onde todos partimos. Um ano dedicado ao conhecimento e, quem sabe nesta tônica, eu me afaste deste estado impróprio e me aproxime um pouquinho mais de seu oposto.