“Curar quando puder, aliviar quase sempre, consolar sempre”. As sábias palavras de Hipócrates atravessaram milênios como exemplo da boa prática. Interessante como parecemos esquecer essas orações neste século. Avançamos a passos largos sobre inúmeras doenças cujo prognóstico reservado nos forçava buscar um alento ao paciente. Hoje temos a chave da cura de muitas moléstias, contudo ainda somos limitados pela nossa natureza humana de estreito espectro quanto a muitos aspectos da vida, especialmente quando se trata do término dela.
Nas aparências, a morte deixou de ser uma companheira natural das enfermarias e consultórios para se tornar um tabu. A tanatologia, estudo da morte, se desenvolveu nas últimas décadas, mas permanece confinada aos recônditos de nossas bibliotecas. A psiquiatra suíça Elisabeth Klüber-Ross descreveu em 1969, no livro “Sobre a Morte e o Morrer”, as várias etapas que atravessamos diante da perda ou do enfrentamento do próprio fim. Seriam estas, numa ordem uma tanto flexível, a negação, raiva, barganha, tristeza e aceitação. Suas primeiras palavras foram “O que os doentes terminais têm a ensinar a médicos, enfermeiros, religiosos e aos próprios parentes”.
Neste ponto, volto dois anos atrás, quando ainda interno, na emergência do Hospital do Coração. Fui imerso num ambiente onde reinava a negação. A todo o momento, víamos alguém morrer, vítimas especialmente de infartos. O doente chegava, praticávamos as manobras de ressuscitação, anunciávamos a hora da morte e nos deslocávamos para as lanchonetes. Nada era discutido. Nossos pensamentos se voltavam para as partidas de futebol na TV, uma festa no fim-de-semana ou a próxima piada.
Meses depois, estava lotado na enfermaria de cardiologia do HUWC e fui encarregado de um paciente chamado José*. Era um simpático senhor de 69 anos, evangélico, animado e com uma família sempre presente, ladeando seu leito. Fora acometido por um câncer prostático e, durante tratamento, descompensou de uma insuficiência cardíaca até então desconhecida. Eu o conheci durante a cineangiocoronariografia. No laudo, várias lesões de tronco de coronária, tornando-o candidato a revascularização cirúrgica. Nos exames pré-cirúrgicos, uma ultrassonografia evidenciou múltiplas nodulações hepáticas sugestivas de metástases. Não podia operar o coração devido ao câncer e não podia tratar a próstata devido ao coração. Estava condenado. Relatório de alta e encaminhamento para manejo clínico paliativo. Morreu em fevereiro do ano seguinte.
Um ano se passou e estava encarregado de outra paciente na enfermaria cirúrgica. Dona Maria*, 43 anos, voltava para o “second look” após várias sessões de quimioterapia devido a um câncer de ovário. Durante operação, a cavidade abdominal fora revisada, destacando-se a ausência de câncer visível e possível cura. No pós-operatório, começou a apresentar febre, dispnéia e foi iniciado antibioticoterapia para infecção de sítio cirúrgico. Morreu de sepse 4 dias depois.
Em todas as situações descritas acima, eu era apenas um estudante. Minhas atribuições envolviam colher a história dos pacientes, executar um exame físico minucioso, avaliá-los diariamente, correr atrás de exames ou pareceres e estudar muito para discutir cada caso. Um dia era cardiopatia, noutro câncer, vasculites, pneumonias, AIDS, enfim, uma gama de morbidades que por vezes guardavam entre si apenas o desfecho: a morte. Mas a impressão que sempre ficava era a negação deste fato. Como lidar com a morte? Enquanto outros jovens estudavam direito, engenharia ou letras, estávamos lá, lutando contra a morte. Obviamente, havia aqueles internos que alcançavam os demais estágios descritos por Klüber-Ross, mas muitos permaneciam negando.
O tabu permanece. Derrotas são inaceitáveis neste mundo novo, onde apenas o sucesso é permitido. Falhas devem ser ignoradas e esquecidas. Erramos todos os dias negando que a morte deve ser vencida a qualquer custo e pecamos ainda mais quando não trazemos esta discussão para os novos médicos que se formam nos hospitais universitários deste país. A cada turma formada, perpetuamos a ignorância quanto ao fato monumental que recai sobre nossos ombros. Saímos em muitos aspectos imaturos quanto aos desafios de nossa prática. O campo de trabalho por vezes nos dará as lições erradas e até mesmo aprenderemos, contudo da maneira mais difícil.
Nos casos descritos, não houve cura. De certa forma, nosso empenho fora premiado com o alívio do sofrimento. Entretanto, a máxima do consolo, esta talvez também devesse ser dirigida também a nós, estudantes.
* Nomes alterados para preservar as identidades.
De alguns anos pra cá, a Morte, de maneira calma, tem acometido minha família. Como uma visita incômoda, mas esperada, mesmo que surpreenda o momento de sua abordagem, quase um jagunço da caatinga em sua vendetta rotineira, ela vem. chegou-se aos poucos entre os mais velhos, teve sede de algum leite novo, silenciou-se por algum tempo após ter a primeira fome saciada, mas se instalou. Ela está lá na vinda tarde do parente, na visita do domingo, na sanidade abandonada. Ela está lá e sei que a negamos. Ela acorda, janta, dorme silenciosamente conosco e fazendo-se de muda, surda, cega nós deixamos ela dividir a rotina. Não sou médico. Não sei como é conviver com enfrentando essa certeza de maneira tão presente, mas sei o que vc quer dizer. Não é agradável, mas sei. Espero alcançar, junto com os meus, o estágio seguinte...
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