terça-feira, 24 de maio de 2011

Cajueiro

O Cajueiro é uma das experiências mais interessantes e, em níveis quase intoleráveis, estressantes, dessa minha passagem por Guaribas. Trata-se de um povoado situado a cerca de 30 km da sede do município, contudo exige uma viagem de no mínimo uma hora e meia, passando apenas por estradas carroçais em que apenas carros de motor forte passam. É uma região pobre, com moradores em sua maioria analfabetos e mocinhas gestantes.


Chama atenção também devido a maioria dos casais serem consangüíneos. Isolados deste jeito, não seria absurdo casarem-se com primos de 1º ou 2º grau. Tal fato fica bem evidenciado pela escassez de sobrenomes. Diversidade é a chave, já dizia Darwin, mas nesse caso, a falta dela é a perdição. Fiquei impressionado com a quantidade de moradores com distúrbios neuropsiquiátricos, variando da epilepsia, passando por déficits mentais até suicidas!


Num domingo antes da segunda viagem ao Cajueiro, conheci uma senhora de 48 anos que chegou até mim implorando por um atestado médico para se aposentar. Na verdade a conheci inconsciente, já que tinha acessos de síncope motivados por fortes emoções. Os parentes a trouxeram já com um diagnóstico obscuro de epilepsia e mostrando medicações que em nada ajudariam caso fosse verdade. Pedi que se acalmassem, esperei a senhora se recuperar e solicitei que a levassem até o consultório neste dia. Então ela veio!


Assim que o carro chegou à unidade de saúde do Cajueiro, ela desmaiou novamente. Seu pai, um senhor nervoso, veio correndo até mim para que a atendesse de prontidão, desprezando os outros pacientes que já me aguardavam desde cedo. Fui até a mulher inconsciente e, assegurado de que logo estaria acordada, comecei as consultas respeitando a ordem de chegada. Uma hora se passou até que ela adentrasse meu consultório. Saí detrás da mesa, sentei ao seu lado e conversamos.


Dona Clotilde* tinha uma face muito abatida, como se tivesse passado por muitas tragédias ao longo da vida, o que logo se mostrou verdade através de seus relatos. Sempre que perguntava sobre algum fato passado, ela prontamente negava lembrar-se, contudo, com um pouco de paciência, sua história foi se revelando. Sentia uma tristeza profunda em decorrência da morte de 2 irmãos, que lhe eram muito próximos. Não se recuperara do luto e passou a ter alucinações auditivas e insônia. Quando a angústia chegava ao limite, o que já acontecia freqüentemente, desmaiava.


Conversamos por um longo tempo, para irritação dos outros pacientes que esperavam no lado de fora. Troquei uma das medicações das quais fazia uso e adicionei outra para completar o tratamento farmacológico. Despedi-me de dona Clotilde e a deixei a vontade para me procurar novamente caso precisasse. Um mês se passou para que voltasse a vê-la. Já não era a mesma mulher que encontrara desmaiada semanas atrás. Já assumia uma postura mais confiante, não perdia mais a consciência e não chorava mais como antes. Sorria com certa desenvoltura e seu discurso já era preenchido com palavras mais alegres.


As drogas que prescrevi certamente tiveram seu quinhão neste sucesso. Entretanto dedico a vitória deste caso as palavras de um dos meus mais estimados mestres, o padre e psiquiatra Rino. Dentre suas maravilhosas lições, a capacidade de ouvir o que os pacientes tem a dizer foi uma das mais valiosas para o exercício desta profissão. O diálogo é a base para compreensão, e deveríamos zelar por sua adoção em todos os aspectos de nossas vidas.


Por fim, são casos como esses que fazem tudo valer a pena. Quando acordo as quintas-feiras e me deparo com a entediante viagem ao Cajueiro, procuro lembrar-me de dona Clotilde. Um novo sorriso que consegui garimpar num lugar tão abandonado. Se conseguir extrair mais um da próxima vez, estarei cumprindo meu papel de tornar este mundo um lugar um pouquinho melhor de se viver.

*Nome alterado para preservar a identidade.

Um comentário:

  1. Cara, esse texto ficou massa! Sério. não consegui parar de ler até chegar ao fim. muito bom mesmo. Acho que outros mais iguais a esse devem ser editados em um livro pomposo. Cronista de mão cheia, maninho! Parabéns!

    ResponderExcluir