sábado, 29 de dezembro de 2012

A caatinga e o Caatingueiro

Era mais uma tarde quente de outubro. O sol se inclinava no horizonte, despejando toda sua glória sobre os sertões nordestinos. À minha frente, apenas a estrada de terra e um futuro não desenhado. Para trás, deixava dois anos de vida e uma história.

Emoldurando esse quadro, a Caatinga.

Ainda estudante, guardava um grande preconceito quanto a esse bioma. Era ignorante. Nasci na caatinga e lhe neguei o feito. Desdenhava de suas matas secas, de sua aridez. Contudo, convivendo nesse habitat, passei a conhecê-lo. Digo mais, passei a admirá-lo. Vivendo em seus domínios, pude admirar sua beleza e respeitar sua importância. Da mesma forma, também pude conhecer o sertanejo, esse indivíduo que sobrevive em condições extremas e que tem como recompensa nosso desdém pseudocivilizado.

Lembrei Euclides da Cunha, que nos últimos anos do século XIX foi designado a acompanhar a Guerra de Canudos no sertão da Bahia. Voltando do conflito, publicou o livro Os Sertões em que descrevia o cenário, os habitantes e o andamento da guerra – A Terra, O Homem e A Luta. Quero me ater aos dois primeiros tomos do livro.

Escrevendo numa linguagem hermética, caprichada de termos técnicos mesclados a neologismos, Euclides pinta um quadro do sertanejo e seu lar com profundo tom determinista e generosas doses de racismo. Até hoje observamos a influência de suas palavras quando assistimos aos repetidos episódios de ataques a nordestinos, seja nas ruas ou em redes sociais.

Eis as palavras imortais de Euclides sobre o homem: O sertanejo é, antes de tudo, um forte.

Essa oração diz tudo sobre o homem que vive na caatinga. De certa maneira ele se confunde com a vegetação, feia, tortuosa, dura, espinhosa. Mas traz em seu âmago um poder transformador inigualável, uma fé inabalável, uma energia imensurável. Pouco afeito as palavras, passa por rude. Não tem os modos que criamos para parecermos melhores. Escondem as mãos sujas e calejadas do trabalho. Desculpam-se por não ter roupas melhores ou por não oferecer algo melhor que água – seu bem mais precioso.

Então se transmutam. Vestem o gibão de couro e tornam-se heróis, desbravando a mata intrincada atrás de uma rês perdida. Suportam horas de sol quente nas costas para arar a terra e dela tirar seu sustento.

Seu lar é tão surpreendente quanto. Uma vastidão marcada por áreas de chapadas, depressões e elevações. A vegetação xerófila inclui desde gramíneas, arbustos e árvores. O mandacaru e o xique-xique são elementos comuns em sua paisagem. O solo varia do cascalho ao arenoso. Sua fauna é rica e desconfiada. Vive a espreita da onça pintada e do caçador. Por vezes, são vítimas do fogo, que se espalha como o vento por suas paragens. Alguns pontos convivem com seca intensa enquanto outras são intermitentemente abençoadas com chuvas. Euclides observou na época que a caatinga sofria com grandes temporadas de seca em períodos cíclicos de 9 a 12 anos que podiam ser recontados desde o século XVIII.

Apesar de todo o sofrimento trazido pela estiagem, fui agraciado com o incrível espetáculo de cores proporcionado pela natureza. As plantas verdinhas, ao longo dos meses, foram mudando seus matizes, trocando seus trajes verdejantes por cores quentes. Logo suas folhas irradiavam um amarelo que aos poucos encandeceu num vermelho vivo. No mesmo período, a incapacidade de sustentar tantas folhas com o escasso alimento fornecido pela terra fazia com que elas fossem liberadas e forrassem o chão, tornando a mata num cemitério de caules brancos (caa = mata; tinga = branca; do tupi).

Esse fenômeno se repete periodicamente e ilustra de maneira soberba o ciclo da vida e a importância da água nessa região. Basta caírem as primeiras gotas de chuva e a mata recupera seu manto esmeralda.

Da janela do carro, tentava ver o mais adentro da mata o possível. Tarefa absurda. Mesmo desprovida de folhas, a vegetação é intrincada, hermética como as palavras de Euclides. Não se conhece a caatinga por palavras. As verdadeiras ainda não existem para descrevê-la. Tampouco se conhece um sertanejo por livros. Apenas a convivência permite.

Deixo meus sertões modificado, um pouco mais calejado, a pele mais dura. Volto para casa maravilhado e saudoso com o que vivi. Uma experiência única, que humildemente tentei transformar em palavras.

4 comentários:

  1. E conseguiu descrever perfeitamente. Por três anos eu convivi cotidianamente com esse clima e o seu povo e passei a admirá-los. O sertanejo por resistir e conviver com as adversidades do clima com um sorriso estampado no rosto. E o clima que nos agracia com uma linda flor de mandacaru quando a estação chuvosa chega para encher as cisternas do bem mais precioso: a água. Lindo texto, parabéns! Vou replicá-lo para uma turma que vai adorar lê-lo.

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  2. Esse texto explica parte da emoção do trabalho "em que vivo".
    Deus sabe o quanto sou grata pela benção de conviver com essa gente!

    ...Tampouco se conhece um sertanejo por livros. Apenas a convivência permite.

    Lindo texto!! parabéns!!

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  3. E um texto excelente de vários pontos de vista inclusive geográfico!!
    Parabéns....

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  4. Pessoal, muito obrigado pelas belas palavras acerca do texto. Espero que continuem acompanhando este meu singelo diário.

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