sábado, 27 de outubro de 2012

A Famigerada

Era uma manhã ensolarada como as outras. A breve caminhada até o posto de saúde custava algumas gotas de suor apenas em virtude do calor, pois pouco mais de 400 metros separavam minha casa do trabalho. A cada três passos declarava um bom dia aos vários vizinhos, sentados nas calçadas, e errantes que partilhavam do meu caminho.

Já ganhava a primeira metade da trilha quando fui abordado pelo seu Josué*. Um senhor de pele escura, grossa, típica de quem ganha a vida na roça. Já contava mais de 60 anos, mas ainda conservava disposição para dar um pique até me alcançar.

- Doutor, está indo pro hospital? – perguntou assim que pareou comigo. Após minha afirmativa, prosseguiu falando – Sabe o que é, doutor? É que eu queria que você fizesse uma receita de benzetacil pra eu tomar mais tarde.

Intrigado com aquilo, perguntei o motivo pelo qual ele queria tomar aquela medicação em particular. Sua resposta foi mais curiosa ainda. Seu Josué disse que sempre que podia tomava uma injeção de benzetacil, desde que era novo. Os motivos, os mais variados! Quando sentia febre; quando tomava um susto muito grande; quando levava uma marruada de um bezerro e até quando doía as costas...

- É um santo remédio, doutor! É só tomar que eu fico bonzim! Parece vitamina!

Este santo remédio foi descoberto há quase 100 anos, pelo médico escocês Alexander Fleming. Reza a lenda que o brilhante pesquisador saiu de férias num mês de Agosto para curtir o verão europeu e esqueceu de guardar as placas de cultura de bactérias que cultivava em seu laboratório. Quando retornou, em Setembro, notou as placas na bancada, cheias de bolor, e já ia limpando e esterilizando quando notou que algumas culturas haviam sido destruídas pelo fungo. Descansado e bronzeado, dedicou-se a pesquisar o fungo e descobriu a Penicilina, o que lhe rendeu um prêmio Nobel de medicina e um título de cavaleiro do Reino Unido.

Décadas se passaram e o uso abusivo e indiscriminado deste antibiótico miraculoso o tornou obsoleto para uma variada gama de bactérias. Justificativas? As mesmas dadas pelo seu Josué. Não muito tempo atrás, havia quem usasse os restos do pó nos frascos para passar em feridas, contribuindo mais ainda para seleção de cepas resistentes.

Para complicar a história, ainda existe o fato de que a penicilina benzatina é usada de forma injetável, tipicamente intramuscular, com um ônus ao paciente – dói.

Eu era apenas um garoto quando tive minha nádega direita beijada pela famigerada. Na época, sofria de impetigo, uma infecção de pele. O algoz foi meu padrinho, médico. Enquanto aplicava, parecia que estava abrindo minha carne a sangue frio. A desgraçada dói pra caramba! Um sujeito em plenas faculdades mentais não tomaria essa medicação de forma rotineira.

Ainda interno, ficava condoído com aqueles que saíam do consultório com a receita de benzetacil. A primeira vez que a prescrevi também foi acompanhada de um sentimento de dó. Um garotinho de 6 anos que desenvolvera febre reumática e estava condenado a tomar uma dose a cada 21 dias pelo menos até completar 21 anos.

Infelizmente, no processo de diagnóstico e tratamento, muitas etapas são dolorosas e penosas aos pacientes. Uma criança não entende por que deve ter seu sangue retirado, ou por que deve tomar uma injeção todo mês. Apenas sofre. Pior ainda. Nós médicos nos tornamos cada vez mais alheios ao sofrimento de nossos pacientes. Curar, aliviar, consolar – o antigo, belo e negligenciado ditado.

Mas então procurei me colocar no lugar do seu Josué – uma mistura de pouca letra com uma bagagem cultural repleta de desinformação e maus costumes. De outra forma, talvez a dor causada pela injeção aliviasse a que lhe corroía o âmago. Substituir uma angústia na alma por outra na carne, esta última fácil de localizar, de causa bem determinada e limitada.

É obvio que não lhe entreguei a receita. Em contrapartida, ofereci meu tempo. Convidei a uma consulta no posto para discutirmos a real necessidade do medicamento, orientei quanto aos riscos da automedicação e o deixei a vontade para me procurar sempre que julgasse preciso.

* Nome alterado para preservar a identidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário