Já
ganhava a primeira metade da trilha quando fui abordado pelo seu Josué*. Um
senhor de pele escura, grossa, típica de quem ganha a vida na roça. Já contava
mais de 60 anos, mas ainda conservava disposição para dar um pique até me
alcançar.
-
Doutor, está indo pro hospital? – perguntou assim que pareou comigo. Após minha
afirmativa, prosseguiu falando – Sabe o que é, doutor? É que eu queria que você
fizesse uma receita de benzetacil pra eu tomar mais tarde.
Intrigado
com aquilo, perguntei o motivo pelo qual ele queria tomar aquela medicação em
particular. Sua resposta foi mais curiosa ainda. Seu Josué disse que sempre que
podia tomava uma injeção de benzetacil, desde que era novo. Os motivos, os mais
variados! Quando sentia febre; quando tomava um susto muito grande; quando
levava uma marruada de um bezerro e até quando doía as costas...
-
É um santo remédio, doutor! É só tomar que eu fico bonzim! Parece vitamina!
Este
santo remédio foi descoberto há quase 100 anos, pelo médico escocês Alexander
Fleming. Reza a lenda que o brilhante pesquisador saiu de férias num mês de
Agosto para curtir o verão europeu e esqueceu de guardar as placas de cultura
de bactérias que cultivava em seu laboratório. Quando retornou, em Setembro,
notou as placas na bancada, cheias de bolor, e já ia limpando e esterilizando
quando notou que algumas culturas haviam sido destruídas pelo fungo. Descansado
e bronzeado, dedicou-se a pesquisar o fungo e descobriu a Penicilina, o que lhe
rendeu um prêmio Nobel de medicina e um título de cavaleiro do Reino Unido.
Décadas
se passaram e o uso abusivo e indiscriminado deste antibiótico miraculoso o
tornou obsoleto para uma variada gama de bactérias. Justificativas? As mesmas
dadas pelo seu Josué. Não muito tempo atrás, havia quem usasse os restos do pó
nos frascos para passar em feridas, contribuindo mais ainda para seleção de
cepas resistentes.
Para
complicar a história, ainda existe o fato de que a penicilina benzatina é usada
de forma injetável, tipicamente intramuscular, com um ônus ao paciente – dói.
Eu
era apenas um garoto quando tive minha nádega direita beijada pela famigerada.
Na época, sofria de impetigo, uma infecção de pele. O algoz foi meu padrinho,
médico. Enquanto aplicava, parecia que estava abrindo minha carne a sangue
frio. A desgraçada dói pra caramba! Um sujeito em plenas faculdades mentais não
tomaria essa medicação de forma rotineira.
Ainda
interno, ficava condoído com aqueles que saíam do consultório com a receita de
benzetacil. A primeira vez que a prescrevi também foi acompanhada de um
sentimento de dó. Um garotinho de 6 anos que desenvolvera febre reumática e
estava condenado a tomar uma dose a cada 21 dias pelo menos até completar 21 anos.
Infelizmente,
no processo de diagnóstico e tratamento, muitas etapas são dolorosas e penosas
aos pacientes. Uma criança não entende por que deve ter seu sangue retirado, ou
por que deve tomar uma injeção todo mês. Apenas sofre. Pior ainda. Nós médicos
nos tornamos cada vez mais alheios ao sofrimento de nossos pacientes. Curar,
aliviar, consolar – o antigo, belo e negligenciado ditado.
Mas
então procurei me colocar no lugar do seu Josué – uma mistura de pouca letra
com uma bagagem cultural repleta de desinformação e maus costumes. De outra
forma, talvez a dor causada pela injeção aliviasse a que lhe corroía o âmago.
Substituir uma angústia na alma por outra na carne, esta última fácil de
localizar, de causa bem determinada e limitada.
É
obvio que não lhe entreguei a receita. Em contrapartida, ofereci meu tempo.
Convidei a uma consulta no posto para discutirmos a real necessidade do
medicamento, orientei quanto aos riscos da automedicação e o deixei a vontade
para me procurar sempre que julgasse preciso.
* Nome alterado para preservar a identidade.
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