segunda-feira, 25 de junho de 2012

A Perna, o Cérebro e o Coração


O Sr Casimiro* compareceu ao meu consultório pela primeira vez há um ano, num mês de Junho como esse. Um senhor distinto, com pouco mais de 50 anos, estatura mediana, olhar sincero e com uma queixa bastante curiosa. Há alguns meses vinha apresentando uma dormência no dedão do pé direito, acompanhado de dor e cianose da extremidade. Era fumante e tinha uma barriga bem generosa, fruto de muito beiju (tapioca) e carne assada – tipicamente consumida diariamente na localidade onde morava.

Durante a consulta, descobri que também era hipertenso e fazia uso bastante irregular das medicações. Procedi com o exame físico e observei que os pulsos periféricos da perna direita estavam bastante comprometidos, fortalecendo a hipótese de insuficiência vascular arterial periférica. Solicitei alguns exames, orientei que consultasse um cirurgião vascular e otimizei seus medicamentos para pressão. Então ele sumiu!

Meses depois, fui procurado por um de seus filhos que solicitou uma visita domiciliar, pois seu pai fora operado e não poderia se deslocar até o posto de saúde. Fui vê-lo na primeira oportunidade e fiquei bastante surpreso com o que vi. Seu Casimiro estava sentado no sofá, trajado com bermuda, um par de muletas repousava ao seu lado e apenas uma perna estava apoiada ao chão. Do outro lado, o coto de um membro recentemente amputado! Então ele me relatou o que havia se passado nos últimos meses desde aquela consulta. Fora a Brasília e os médicos confirmaram o que havia dito anteriormente. Entretanto pediram alguns exames e a fila interminável do SUS o premiou com uma infecção no pé doente. Veio embora para Teresina onde um colega ex-residente do HUWC o recebeu e procedeu com a amputação do membro afetado, dada a sua inviabilidade.

Agora, seu Casimiro apresentava a estranha queixa de sentir, por vezes, a sensação de moscas ou formigas andando por sua perna inexistente. Em outras ocasiões, era acometido por fortes câimbras no mesmo membro. Estava encabulado e até receoso de afirmar tais situações diante de seus familiares, pois temia ser taxado como louco.

O termo membro-fantasma foi citado pela primeira vez pelo médico Silas Weir Mitchell que serviu nas trincheiras da guerra civil americana e atendeu milhares de soldados que apresentavam as mesmas estranhas queixas. Décadas antes, o famoso almirante inglês Lorde Nelson, o qual perdera o braço direito durante uma batalha em 1797, também relatara a sensação da persistência do membro, apesar de não vê-lo. Nessa época, concluiu que a sensação era a prova irrefutável da existência e imortalidade da alma, que persistia a extirpação da carne.

Hoje entendemos o fenômeno de uma maneira bem diferente – longe dessa aura mística – e ficamos maravilhados com as novas descobertas no campo da neuroplasticidade. Numa explicação superficial, nosso cérebro possui áreas delimitadas que recebem/geram estímulos para cada setor do corpo. Quanto mais usamos uma dessas partes (o dedo indicador, por exemplo), maiores serão suas representatividades no córtex cerebral. Da mesma forma, quando percebemos um estímulo (e quanto maior ele for), maior será também sua representatividade no cérebro.

Um pé doente, pouco mobilizado e constantemente doloroso, gera más lembranças ao córtex. Quando amputado, novos estímulos deixam de chegar/sair pelas vias neurais, reforçando cada vez mais o estado doloroso/imóvel do membro. Essa seria uma simplória explicação para as estranhas sensações de um membro fantasma.

Mas os cientistas foram além! Perceberam que ao manipular objetos, nosso córtex se expande e passa a englobar o instrumento, aceitando como algo próprio do corpo. Isso explicaria a perícia dos espadachins e outros guerreiros que praticavam anos e anos com suas armas. Também explica algo mais inusitado ainda!

O coração partido.

No princípio, o amante, inebriado pela presença do ser amado, faz de cada momento juntos uma descoberta. Tudo é curioso, cada detalhe é importante. Nesse período, seus córtices começam a ajustar a fina sintonia que irá caracterizar o casal. O tempo passa e logo o amante se funde ao ser amado, um ser absorve o outro e essa ligação é profundamente marcada em nossos cérebros (corações!). A dor de um passa a ser a agonia do outro. Qualquer sensação se confunde. A distância nos faz sentir incompletos.

Então algo acontece e vem a separação. Ninguém preparou seu cérebro pra isso e, de repente, estamos à mercê do caos. Nada mais tem graça, tudo perde sabor, o coração palpita e a respiração falha. Dói! Dói muito. A paixão – sofrimento – se faz valer na carne. Uma parte considerável daquilo que já lhe definia some de repente, é traumaticamente amputada. Para os amantes, uma dor que não passa, que lhe acorda, que dorme junto e lhe preenche os sonhos. Uma dor para a qual não inventaram analgésicos e, mesmo se houvesse, não seriam aceitos, pois é ela que ainda lhe mantém vivo. A dor é o último resquício da presença do ser amado e perdê-la decretaria o fim de tudo!

Um dia, menos tempo, mais tempo, ela suaviza e se esvai, deixando uma leve cicatriz no coração (cérebro), que ainda pode ser cutucada ou mesmo revisitada. O fantasma não vai embora, apenas adormece.

Texto livremente inspirado nas obras “Muito Além do Nosso Eu” de Miguel Nicolelis e “O Cérebro que se Transforma” de Norman Doidge.

*Nome modificado para preservar a identidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário