O
Sr Casimiro* compareceu ao meu consultório pela primeira vez há um ano, num mês
de Junho como esse. Um senhor distinto, com pouco mais de 50 anos, estatura
mediana, olhar sincero e com uma queixa bastante curiosa. Há alguns meses vinha
apresentando uma dormência no dedão do pé direito, acompanhado de dor e cianose
da extremidade. Era fumante e tinha uma barriga bem generosa, fruto de muito
beiju (tapioca) e carne assada – tipicamente consumida diariamente na
localidade onde morava.
Durante
a consulta, descobri que também era hipertenso e fazia uso bastante irregular
das medicações. Procedi com o exame físico e observei que os pulsos periféricos
da perna direita estavam bastante comprometidos, fortalecendo a hipótese de
insuficiência vascular arterial periférica. Solicitei alguns exames, orientei
que consultasse um cirurgião vascular e otimizei seus medicamentos para
pressão. Então ele sumiu!
Meses
depois, fui procurado por um de seus filhos que solicitou uma visita
domiciliar, pois seu pai fora operado e não poderia se deslocar até o posto de
saúde. Fui vê-lo na primeira oportunidade e fiquei bastante surpreso com o que
vi. Seu Casimiro estava sentado no sofá, trajado com bermuda, um par de muletas
repousava ao seu lado e apenas uma perna estava apoiada ao chão. Do outro lado,
o coto de um membro recentemente amputado! Então ele me relatou o que havia se
passado nos últimos meses desde aquela consulta. Fora a Brasília e os médicos
confirmaram o que havia dito anteriormente. Entretanto pediram alguns exames e
a fila interminável do SUS o premiou com uma infecção no pé doente. Veio embora
para Teresina onde um colega ex-residente do HUWC o recebeu e procedeu com a
amputação do membro afetado, dada a sua inviabilidade.
Agora,
seu Casimiro apresentava a estranha queixa de sentir, por vezes, a sensação de
moscas ou formigas andando por sua perna inexistente. Em outras ocasiões, era
acometido por fortes câimbras no mesmo membro. Estava encabulado e até receoso
de afirmar tais situações diante de seus familiares, pois temia ser taxado como
louco.
O
termo membro-fantasma foi citado pela primeira vez pelo médico Silas Weir
Mitchell que serviu nas trincheiras da guerra civil americana e atendeu
milhares de soldados que apresentavam as mesmas estranhas queixas. Décadas
antes, o famoso almirante inglês Lorde Nelson, o qual perdera o braço direito
durante uma batalha em 1797, também relatara a sensação da persistência do
membro, apesar de não vê-lo. Nessa época, concluiu que a sensação era a prova
irrefutável da existência e imortalidade da alma, que persistia a extirpação da
carne.
Hoje
entendemos o fenômeno de uma maneira bem diferente – longe dessa aura mística –
e ficamos maravilhados com as novas descobertas no campo da neuroplasticidade.
Numa explicação superficial, nosso cérebro possui áreas delimitadas que
recebem/geram estímulos para cada setor do corpo. Quanto mais usamos uma dessas
partes (o dedo indicador, por exemplo), maiores serão suas representatividades
no córtex cerebral. Da mesma forma, quando percebemos um estímulo (e quanto
maior ele for), maior será também sua representatividade no cérebro.
Um
pé doente, pouco mobilizado e constantemente doloroso, gera más lembranças ao
córtex. Quando amputado, novos estímulos deixam de chegar/sair pelas vias
neurais, reforçando cada vez mais o estado doloroso/imóvel do membro. Essa
seria uma simplória explicação para as estranhas sensações de um membro
fantasma.
Mas
os cientistas foram além! Perceberam que ao manipular objetos, nosso córtex se
expande e passa a englobar o instrumento, aceitando como algo próprio do corpo.
Isso explicaria a perícia dos espadachins e outros guerreiros que praticavam
anos e anos com suas armas. Também explica algo mais inusitado ainda!
O
coração partido.
No
princípio, o amante, inebriado pela presença do ser amado, faz de cada momento
juntos uma descoberta. Tudo é curioso, cada detalhe é importante. Nesse
período, seus córtices começam a ajustar a fina sintonia que irá caracterizar o
casal. O tempo passa e logo o amante se funde ao ser amado, um ser absorve o
outro e essa ligação é profundamente marcada em nossos cérebros (corações!). A
dor de um passa a ser a agonia do outro. Qualquer sensação se confunde. A
distância nos faz sentir incompletos.
Então
algo acontece e vem a separação. Ninguém preparou seu cérebro pra isso e, de
repente, estamos à mercê do caos. Nada mais tem graça, tudo perde sabor, o
coração palpita e a respiração falha. Dói! Dói muito. A paixão – sofrimento –
se faz valer na carne. Uma parte considerável daquilo que já lhe definia some
de repente, é traumaticamente amputada. Para os amantes, uma dor que não passa,
que lhe acorda, que dorme junto e lhe preenche os sonhos. Uma dor para a qual
não inventaram analgésicos e, mesmo se houvesse, não seriam aceitos, pois é ela
que ainda lhe mantém vivo. A dor é o último resquício da presença do ser amado
e perdê-la decretaria o fim de tudo!
Um
dia, menos tempo, mais tempo, ela suaviza e se esvai, deixando uma leve
cicatriz no coração (cérebro), que ainda pode ser cutucada ou mesmo revisitada.
O fantasma não vai embora, apenas adormece.
Texto livremente
inspirado nas obras “Muito Além do Nosso Eu” de Miguel Nicolelis e “O Cérebro
que se Transforma” de Norman Doidge.
*Nome modificado para preservar a
identidade.
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